Numa das passagens mais nostálgicas de Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, o escritor moçambiquense, Mia Couto, escreveu: “Não quero sair nunca mais, o mundo já não tem mais beleza”. As palavras proferidas pelos antepassados africanos e o pesar com o desaparecimento das coisas simples despertou todos os personagens da narrativa para o início de uma caminhada: a caminhada do redescobrir-se. Redescobrir, nos rituais do cotidiano e no nosso pertencimento com a humanidade, tudo aquilo que foi capaz de conferir sentido e leveza à nossa existência. É dessa mesma fonte de inquietude, da mesma sabedoria dos pretos/as velhos/as, e também da necessidade de enfrentar o esquecimento, agarrando nas mãos a memória dos sábios, é que Bença, a nova montagem do Bando de Teatro Olodum, em cartaz desde o dia 5, no Teatro Vila Velha, nos pede passagem para outro tempo.
Quando se completam 20 anos de trajetória exitosa, tendo se tornado um dos grupos teatrais mais consolidados da Bahia, falar do tempo, dos tempos, soa como uma feliz ironia. Um momento oportuno para deixar que os mais experientes falem, transmitam ensinamentos. O mote inicial para essa reflexão se expressa no próprio nome do espetáculo. A bença/ benção é o gesto afável, antigo, de reverenciar os mais velhos, pedindo e, ao mesmo tempo, compartilhando um desejo de proteção, de carinho, de amor. O argumento aqui é que esse pequeno ritual, até bem pouco tempo atrás tido como corriqueiro, natural e nem por isso menos importante, já não encontra eco nas gerações mais novas. É um legado que, aos poucos, vem se perdendo do mundo face à rispidez, a racionalidade produtivista, ao individualismo exacerbado, enfim, face à perda da própria essência humana.
A partir desse sentimento de perda, de uma sociedade que, de alguma maneira, desaprende e ojeriza sentimentos em nome de valores fluidos, passageiros, se constrói a narrativa. Com os atores em cena durante toda a peça, as situações vão surgindo para tratar de variadas experiências: os velhos que contam histórias para os seus netos, os netos que tem pressa e vontade de fazer tudo no mesmo instante, a juventude que não aprecia o fruto colhido de uma árvore, os adultos que confundem o sagrado com crendice leviana, a miséria e a dor de um povo sofrido, e a eterna luta desesperada pela vida – para senti-la na sua intensidade.
Evidente que todas essas relações se amparam invariavelmente na questão racial, o que não chega a surpreender em se tratando do Bando e do próprio Márcio Meirelles. No palco essa discussão ganha forma: são duas projeções, um vão livre no centro, atabaques, agogôs, turbantes, colares, roupas brancas e uma mistura rítmico-cênica que remete a uma cerimônia do candomblé. Depois de Cabaré da Raça e Ó pai Ó, marcos importantes na dramaturgia baiana, pintadas com a cor, sofrimento e alegria dos negros, Bença toma rumo diferente da denúncia social e do processo de invisibilidade que acomete a negritude – o que não significa, sob hipótese alguma, ausência desses aspectos. Agora, o principal volta-se para o íntimo do ser humano, para as suas crenças, seus ritos e entendimentos sobre a inexplicável experiência que é viver. Assim é que as marcas que geriram e aglutinaram uma identidade ao grupo se transformam dentro da sua própria matriz, sem se perder.
Enquanto as canções e o texto desenrolam-se nas projeções, colocadas nas extremidades, outros atores aparecem colocando doses de realidade à ficção ou apenas atenuando as fronteiras que porventura existam entre esses dois universos. Quase simultaneamente Makota Valdina, Bule-Bule e outras personalidades negras depõem, sem cortes do entrevistador, sobre esse mundo em transformação e sobre os costumes essenciais do passado. E a ideia embutida na bença, que envolve, sobretudo, respeito, passe a ser o fio condutor das falas. São esses atores, doutores sem diploma, de conhecimento apurado, que perfazem, sem serem didáticos ou clichês, dois dos principais recados do texto: não é possível ter tudo ao mesmo tempo e as gerações mais jovens precisam ter tranqüilidade e paciência para o (re) aprendizado.
As projeções cumprem também a função de ampliar consideravelmente as muitas experiências que o público pode ter assistindo ao espetáculo, deixando claro que não é possível, numa única vez, absorver tudo o que foi apresentado. Embora fique a percepção de que é possível revisitar a peça sobre outra perspectiva completamente diferente, até mesmo mudando de posição no teatro, esse excesso de informações eventualmente cansa. Em todos os cantos algo inusitado está acontecendo, alguém está expondo os pensamentos e o espectador tem o seu foco e concentração repartidos e quase dispersados. O áudio de alguns trechos também dificulta o entendimento da história, o que é desagradável, especialmente, numa peça em que a narrativa não é linear.
Sem os habituais agradecimentos ao público, os atores se retiram um a um do palco. Até então fica a dúvida se de fato o espetáculo efetivamente terminou. Assim, com as luzes ainda apagadas, os espectadores também se encaminham para a saída, um a uma, de acordo com o seu tempo. Nesse final discreto, nem a vida nem arte que pode imitá-la acabam, apenas continuam em outros espaços e em outros tempos.
Hoje é o último dia. Corre lá!