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quinta-feira, 28 de outubro de 2010


O que faz andar a estrada? 
É o sonho. 
Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. 
É para isso que servem os caminhos, 
para nos fazerem parentes do futuro.
(Mia Couto)

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Errante navegante, por mais distante, eu jamais te esqueceria.



Ao regressar do outro lado da montanha, João Celestioso, com o vagar próprio dos sábios e dos homens mais sensíveis às reflexões sobre a existência, deixa-se saborear pela força de suas palavras: “Afinal, tudo são luzes e a gente se acende é nos outros. A vida é  um fogo: nós somos suas breves incandescências”.  Como num grandessíssimo espetáculo dado as atuações intensas, capazes de nos rasgar em humanidade e de nos encetar pelos caminhos dos mistérios que perfazem o nosso “ser”, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (Companhia das Letras, pgs. 262, R$ ?) , do escritor Mia Couto,  é uma convocatória do descobrir-se.

Descobrir-se indo ao âmago daquilo que nos faz existir, descobrir-se pelas alegrias e pesares alheios, descobrir-se retirando de si o que encobre e o que torna distante. Descobrir-se é também um exercício de imiscuir no íntimo aquilo que o poeta uma vez chamou de “Sentimento do Mundo”.  É dessa convocatória que se começa a partilhar quando nas primeiras páginas, Mariano, jovem universitário, embarca rumo à sua terra natal com o objetivo ardiloso de comandar a cerimônia fúnebre de seu avô, Dito Mariano. A África, ventre da humanidade, torna-se aqui o terreno da partida, da chegada, do encontro e da vida que se acende e se incendeia com tudo. Metáfora de si, do mundo e da existência, apresenta-se como a mãe condutora do enredo preenchendo-o com cantos escuros, com os mistérios mais difíceis e com a necessidade veemente de viver.  A esse desafio, Mariano entrega-se.

O cenário, Luar-do-Chão, que por natureza nos impele para a sensação de que contemplar o distante é ilusão, uma vez que ele está sob os nossos pés e alcances, é Moçambique, terra de Mia Couto. Quem espera ver no país, resumido pela obra na rígida fronteira cidade-ilha,  a  pobreza generalizada, vista, revista, filmada e fotografada pelas lentes ocidentais, se surpreende com riqueza. Com riqueza de histórias, de personagens, de misticismo e de tradições e de valores de um mundo que já não é, mas que segue pulsante. A surpresa, entretanto, não permite cair em ilusões e na fuga – é ficção, mas existe um real sendo representado, dando pistas imprescindíveis para falar de um povo e de suas vivências. Assim é que, mesmo não se tratando de um texto assentado na crueldade do realismo, na denúncia explícita das questões envolvendo África e seus filhos, a pobreza, a miséria social – muitas vezes imbricada na miséria humana-, a relação de exploração bem como a busca infinda pela dominação daquilo que está além do nosso poder, são elementos que interferem no desenvolvimento da trama e no desenrolar de seus conflitos. Uma noção de interferência, a bem da verdade, amplificada, posto que Luar do Chão e a cidade esboçam e traduzem o mundo verdadeiro (é possível mesmo haver essas distinção?) e os seus (des) encontros.

Costurada por frases que, muitas vezes, parecem ter sido talhadas pelas mãos negras dos canaviais, rasgando-se na busca por ritmos e cadências particulares, a obra resvala-se no universal.  É uma luta permanente entre permanecer resistindo e se entregar os desvarios da cobiça, da ganância e de todos os elementos que afastam o homem do seu descobrir-se. Assim é que o regresso de Mariano da cidade, completamente lavada pela água do capitalismo moderno, à Luar de Chão expõe o confronto dos universos.  É um dilema que se coloca acima de reproduzir, grosso modo, o maniqueísmo da literatura oitocentista européia.   Não é escolher entre o bem e o mal, mas entre ir ou não ao essencial, ao essencial que, como pronunciou o português Saramago, é “invisível aos olhos”.

Nessa briga, permeada pelos ditames do pós-colononialismo, é como se ao mundo inteiro fosse feito o pedido bíblico de voltar ao pó, de se reduzir para renascer verdadeiramente grandioso. Assim é que a cega Miserinha, a mãe Mariavilhosa, a avó Dulcinesa, o pai Fulano Malta, o avô e diversos outros que,como João Celestioso, nem adentram de fato na narrativa, seguem a risca essa empreitada. Aos poucos, os enigmas por trás da morte do avô e o passado, que, de forma recorrente, é objeto de esquecimento e de lembrança, se fundem para um tempo muito próprio: o tempo da existência. É desse ritual que os personagens, no confronto por despir-se e se achar, compartilham.

Evidente que todo esse jogo recai sobre muitas metáforas, artífices importantes para a compreensão do nosso mundo independente de fronteiras entre ilhas e cidades. Couto, também autor do magistral Terra Sonâmbula, faz uma leitura da existência humana sobre a terra a partir da contemplação do que lhe é mais caro: o rio, as árvores, o céu, a terra, o ar tocando as rugas do rosto e o fogo incandescente, dono da vida.  Os próprios nomes atendem a esse propósito, aqui construído de maneira aparentemente despropositada. Na casa intitulada Nyumba-Kaya, transcorrem os mistérios dos homens. Essa casa, transformada em personagem tamanha sua força e vestígio de humanidade que possui, nada mais representa do que a própria terra, tal como nos indica o título original da obra. Mas, afinal, foi dado ao ser humano a possibilidade de encontrar algo no seu “descobrir-se”? O que exatamente se poderia encontrar nessa busca tão confusa, sem regras ou caminhos estabelecidos?

A estas perguntas, numa das secretas cartas, o protagonista nos responde questionando: “A terra pode amolecer por força do amor?”.  E, logo em seguida,  nos dá o ponto de partida e de chegada de todos os demais personagens da história: “Só se o amor for uma chuva que nos molha a alma por dentro”.  Adiante, esclarece: “A chuva é só uma. É sempre a mesma chuva, apenas interrompida de quando em quando”.  É para esse momento de interrupção que Mia Couto nos propõe a travessia.  Religar os fios do mundo para nos entender e nos fazer des-cobrir da nossa loucura e da indiferença cotidiana. Pintá-lo com as cores da beleza, demovendo-lhe da feiúra, da mesquinhez, da sua pobreza, fazendo-o respirar, enchendo rios com esperança.  Do ideal leve e, ao mesmo tempo, comprometedor de perceber que encontrar a vida em outro lugar é encontrá-la em si mesmo, sumindo, reforçando-se e se alimentando dessa seiva que emana da mãe terra e do senhor tempo.  “Da seiva amor”, nos diz.

Frases bonitinhas pescadas do livro. 


“Quando já não havia outro tinta no mundo
O poeta usou de seu próprio sangue.
Não dispondo de papel,
Ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz,
O rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem foz nem nascente”

“Sou como a palavra: minha grandeza é onde nunca toquei.” Avô Mariano. 

“-Por que demoraste tanto?
-Não fui eu, Tia. Foi o tempo”.


“Não quero sair nunca mais.
- Tem medo do que?
- O mundo já não tem mais beleza.”

“O mundo já não era um lugar de viver.
Agora, já nem de morrer é”.  Avô Mariano.