O primeiro atingiu a pálpebra esquerda, trazendo-lhe o desconforto de estar no mundo. O outro caiu vertiginosamente contra a estrada que seguia. Vendo-o se transformar em nada, se desfazendo diante daquilo que poderia ser a imensidão, sentiu o infortúnio de rasgar-se em vida. E agora que existia, poderia contar algumas histórias
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segunda-feira, 29 de outubro de 2012
Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre 2 jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre 2 lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
Etc.
etc.
etc.
Desaprender 8 horas por dia ensina os princípios
Manoel de Barros
sexta-feira, 28 de outubro de 2011
Parede
Eu quero um livro que não tenha nada escrito. Um texto que eu possa olhar e só contemplar a brancura do papel. Que não tenha absolutamente nada a ser lido, entendido e pensado. Esse livro tem que ser como um espelho de tudo. Para que quando eu olhe, imagine a história que está ali escondida e que não a acho. Para que crie os personagens e os veja transitando de folha em folha até o derradeiro final, que não poderá ser mais do que um começo invertido. Esse livro poderá mostrar-me a aspereza da vida e a crueldade de alguns verdugos. Mas é justamente na sua face mais reflexiva, na superfície mais escancarada que eu quero descobrir a relevância de tudo isso que agora está aqui fora: a relevância do nada.
quarta-feira, 26 de outubro de 2011
Nos Caracoles
Toda a vida parece traduzida nessa estrada : ainda que dê muitas voltas em torno de um imenso precipício, que faça prender a respiração a cada curva e que levante um pouco da poeira, nos consternando com um cenário tão grandioso, distante e, ao mesmo tempo, tão íntimo, a estrada, a estrada...só segue.
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terça-feira, 25 de outubro de 2011
Sagrado
No silêncio, escutou o canto mais bonito. Eram rimas de profundo amor, eram versos sobre aquilo que é mais importante em toda a existência: o nada. Naquele instante foi deslizando-se para o ar, desfazendo-se em vento. E todo seu corpo sentia essa liberdade, esse estranho regozijo que para alguns é crença, e para outros não pode ser mais do que o instante célebre da larga caminhada.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011
Da volta
Tantas coisas eu tenho a contar que coloco tudo num pedacinho de mar. Que é pra deixar assim mesmo à deriva e ver tudo partir pra alguma paragem distante a procura de um abraço, de uma grama verde, de uma montanha silenciosa, de um rio pedregoso, de uma acerola colhida do pé pelo vento. Um dia eu também parto para esse lugar, a reencontrar-me com tudo o que foi e que segue, a reencontra-me com o todo sem começo e sem fim.
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segunda-feira, 6 de junho de 2011
A verdadeira vida de Sebastian Knight
A resposta a todas as questões da vida e da morte, “a solução absoluta”, estava escrita no mundo inteiro que ele conhecera, era como se um viajante percebesse que a região inóspita pela qual viajava não era apenas um conjunto acidental de fenômenos naturais, mas a página de um livro onde aquelas montanhas e florestas, campos e rios, se achavam dispostos de modo a formar uma frase coerente; a vogal de um lago a fundir-se com a consoante de uma colina sibilante; as curvas de uma estrada a escrever a sua mensagem numa caligrafia, tão clara quanto a letra de nosso pai; as árvores a conversar numa linguagem de mudos, compreensível aos que aprenderam a linguagem dos gestos...Assim, o viajante soletra a paisagem, e o seu sentido se lhes revela; do mesmo modo, o intricado o desenho da vida humana demonstra ser monográfico, agora bastante claro ao olho íntimo que desamaranha as letras entrelaçadas. E o mundo , cujo sentido sentido então aparece, é espantoso em sua simplicidade – e a surpresa maior talvez consista em que, no transcurso de toda nossa existência terrena, com o nosso cérebro limitado por um círculo de ferro, pelos sonhos bem apertados de nossa própria personalidade; não se fez, por puro acaso, aquele simples movimento mental que teria libertado o pensamento aprisionado, concedendo-lhe grande compreensão. Agora enigma estava decifrado. E como o significado de todas as coisas brilhava através de suas formas, muitas idéias e acontecimentos, que tinham parecido de máxima importância, diminuíam a seus olhos, não a ponto de tornar-se insignificantes – pois que nada agora poderia ser insignificante- mas chegando ao mesmo tamanho que outras ideias e acontecimentos, aos quais, antes, negara qualquer importância, agora adquirida.
Nabokov pra essa manhã.
quarta-feira, 6 de abril de 2011
O corpo é linguagem e a leitura é toda sua.
Narrado em primeira pessoa e no ritmo veloz da vida de Nova York, O Animal Agonizante desnuda a vivência do professor universitário David Kepesh, nos anos precípuos da terceira idade. Crítico literário de renome, bem sucedido profissionalmente e legítimo paladino dos anos 60, Kepesh se apresenta, ainda que não obedeça aos cânones do machismo, como homem-corpo. Aquele capaz de racionalizar/reduzir o mais bobo dos sentimentos em prazer. Da maneira como fala ao sorriso que concede às suas alunas, tudo se efetiva no ato de possuir o corpo, consumi-lo. Para inverter esse relação, um amor latino: é para Consuelo Castillo, filha de imigrantes cubanos, que Kepesh se doa por inteiro.
Sem querer e sem acreditar, Kepesh vai mostrando e ratificando a paixão, que poderia parecer o elemento subversivo, como o elemento mais arrebatador da vida - a qualquer idade, em qualquer momento, independente do pensamento que se tenha. Assim, dessa tensão entre os corpos, entre a agressividade sedutora do próprio ato sexual, se desenrolam reflexões sobre o tempo, a idade, as transformações, os desejos, enfim, sobre isso que nos animaliza e nos humaniza: o amor, o sexo e o sentir.
Mesmo que os personagens não se desenvolvam tanto, especialmente Consuelo - o que nos deixa com a clara sensação de que tanta entrega para um homem desses não se justificaria- O Animal Agonizante é uma das respostas plausíveis sobre o que significou a liberação sexual. É precisamente nesse engajamento, muito menos político e por isso mesmo mais sedutor, que Roth ganha terreno. Ele é um escritor gestado e parido na efervescência da América. Viveu, pensou e radicalizou junto com seus pares na construção do novo. E ainda o faz não se reduzindo simplesmente a explicar, mas a compreender, a reinterpretar as relações dessa e da nova geração com o seu país, com o seu mundo.
O corpo, marcado por tantas transformações e constituído pelas perturbações e quietudes da dinâmica social, talvez seja efetivamente a melhor, a mais pura e inesgotável fonte para esse aprendizado. Sem querer sê-lo, acaba se tornando o próprio animal agonizante, completamente desnudo, intenso – começo, meio e fim de tudo.
O corpo, marcado por tantas transformações e constituído pelas perturbações e quietudes da dinâmica social, talvez seja efetivamente a melhor, a mais pura e inesgotável fonte para esse aprendizado. Sem querer sê-lo, acaba se tornando o próprio animal agonizante, completamente desnudo, intenso – começo, meio e fim de tudo.
Na foto o filme O Anticristo. Embora lá tenha a marca impiedosa e a virulência de Lars Von Trier, dá subsídio pra discutir bastante coisa sobre O Animal Agonizante e vice-versa.
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quinta-feira, 31 de março de 2011
And all that jazz.
Abdicar do mundo e fazer da vida apenas um instante ou um renascimento diário tem sido provavelmente uma das maiores ambições da juventude, do espírito de juventude, pra ser mais genérico. Há 60 anos, na segunda metade do século XX, no desolado pós-guerra, a humanidade tomou de assalto esse sonho e pintou muros, paixões e uma história inteira não pra ser contada, mas para ser vivida na intensidade daqueles tempos. É desse sonhar impossível que nos fala Jack Kerouac em On The Road, originalmente escrito nos últimos anos da famigerada década de 40.
Costuma-se no meio literário repetir com veemência que ler somente os grandes clássicos de uma época ou de um só autor é uma das bobagens mais empobrecedoras da vida. Este é um fato. Não lê-los, entretanto, ultrapassa qualquer limite razoável demarcado pela besteira: é um ato de estupidez. Considerado com Ícone da geração hippie, ícone da geração beat, ícone de um monte de coisas que viriam a estourar nos anos subseqüentes, On the Road é, a bem da verdade, uma fotografia dinâmica de um novo despertar. Décadas e décadas se passaram e lemos a história de Sal Paradise e de Dean Moriarty na apreensão e na certeza de que a próxima página resvalará numa explosão de tudo o que se mostra podre, infecundo, obsoleto. E assim o foi e assim o é.
Nesse ponto reside o poder de um clássico. A capacidade de manter permanentemente viva a chama e o envolvimento do que está sendo narrado. Em On The Road não estamos lidando com impressões, mas com certezas. É com convicção que desejamos a liberdade de romper as rígidas relações sociais que mesmo quando se transformam continuam velhas, que pretendemos nos lançar na estrada para assistir o mais o bonito nascer do sol, para dizer que cada dia é uma vida nova e é preciso fazê-la acontecer. Tampouco há titubeios em arrumar a mochila com o essencial e desbravar o novo, cruzar o país, as fronteiras, chegar ao íntimo das coisas e das pessoas somente pelo prazer de senti-las pulsar. “Não havia cidades, povoados, nada, apenas a selva, selva interminável, quilômetros e quilômetros e quilômetros”, diz Sam.
A leitura de Kerouac é a da ruptura. Cortam-se estruturas inteiras para fazer o tempo se encontrar com o espaço. E o local desse casamento é a estrada, a busca incansável, a inquietude, o dizer não três vezes, tal como Judas, ao que permanece. “Ele estava atingindo sua decisões taoístas de uma maneira simples e direta. ‘Qual é a sua estrada, homem? – a estrada do místico, a estrada do louco, a estrada do arco-íris, a estrada dos peixes, qualquer estrada...Há sempre um estrada em qualquer lugar, para qualquer pessoa, em qualquer circunstância. Como, onde, por quê?’. As respostas são tão efêmeras quanto a durabilidade do velho Ford 37 cruzando Denver, Texas, Frisco ou o México. Não sabemos, não queremos saber e isso não nos faz a menor diferença – desde que tenhamos alguns dólares, dois litros de gasolina, uma jukebox, Billie Holiday e o sabor do primeiro trago de um Lucky Strike.
Mesmo sendo dividido em cinco partes, o livro não é um vai e volta. Não há pontos de chegadas, só partidas, só o ir além e além. Da vida pregressa de cada personagem pouco se sabe. Isso talvez tenha motivado a crítica a atacá-lo como um romance de figuras rasas. Embora não haja esse tipo de detalhamento psicológico (saliente-se aqui proposital), os conflitos que perfazem a profundidade daqueles jovens estão todos ali – as vezes nas entrelinhas, as vezes expostos a olho nú. Independente do ritmo e do descompasso que existe entre eles, sabe-se que estão perseguindo o mesmo caminho.
Eventualmente, alguém se dá conta de tanta busca desajeitada e tão necessária para ratificar os compromissos com o presente vivido a queima roupa: “O velho Stan está certo, o velho Stan não está nem aí. Continua com a cabeça tão feita por causa daquelas mulheres, daquela maconha e daquele mambo do outro mundo impossível de absorver, tão estridente que meus tímpanos continuam zumbindo – uau! Ele está tão doido que só ele sabe o que está fazendo.” Só ele sabe o que está fazendo é o resguardo do autor para que não se tente apreender ou descobrir tudo sobre os personagens. É como se ele dissesse: “Ei, não adianta querer entender o que significa o mundo impossível dele, porque dessa responsabilidade e desse conhecimento só ele pode partilhar.” Ou de uma forma mais grosseira: Dá o fora da vida dele.
O que salta aos olhos não é simplesmente a ideia de que a vida imita a arte – uma vez que o livro é anterior aos anos 60 – mas como as duas coisas estão imbricadas de forma inseparável. Não sobreviveriam em dimensões distintas. Os personagens se tornam tão próximos do leitor que nasce ali uma amizade. E se essa relação poderia esbarrar nos limites da obra ficcional, ela se realiza na absorção do mundo impossível que ali materializamos. Sim, tudo em On the Road – Pé na Estrada (também não entendi a bizarrice do título em português) vira palpável – está ali, sem a menor dose de súplica ou auto-ajuda – em nossas mãos. Exatamente como a geração posterior ensinaria ao mundo que pra ser realista é preciso exigir, no mínimo, o impossível.
Como também escreveu Kundera, de tradição diferente, mas não menos emblemática, Kerouac nos diz que a vida está em outro lugar. O tempo todo é preciso viajar, se desprender de si para encontrá-la, para se reencontrar – na fuga e na eterna ausência/presença do passageiro. Essa tônica é o que certamente tem inspirado e encantado gerações que se debruçam sobre aqueles lugares, cheiros, cidades, pessoas, sexo, drogas, excessos sem culpa e por que não vaidades? Toda poeira desse nosso caminho é para ser sacudida sem acuidade.
Assim On The Road, lido ou não por um jovem sul americano sem bússolas, mas com ordem deliberada de partida, lembra a vibração e poder de As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. A tensão incansável entre o ser humano e o ímpeto é aqui revisitada de forma visceral. Se você não se contamina pelo desejo irrepreensível de mudança, de avanço e de derrubada, ao menos se deixar atentar, reparar que algo pode e deve ser diferente. Esse sentimento é o que precisamente nos dá licença para protestar frente aos acadêmicos sisudos: a literatura não é passatempo, não é bobagem para ocupar os espaços vazios.
A literatura é um conhecimento de si, do pertencimento com o que existe. É nascer do sol, é como a vida que Kerouac mostrou: sempre estrada. Ou como transcreveu Sal:“Quando o sol se põe, eu me sento no velho e arruinado cais do rio olhando os longos, longos céus acima de Nova Jersey, e consigo sentir toda aquela terra crua e rude se derramando numa única, inacreditável e elevada vastidão, até a costa oeste, e a estrada seguindo em frente, todas as pessoas sonhando naquela imensidão, e em Iowa eu sei que agora as crianças devem estar chorando na terra onde deixam as crianças chorar, e você não sabe que Deus é a Ursa Maior? A estrela do entardecer deve estar morrendo e irradiando sua pálida cintilância sobre a pradaria, reluzindo pela última vez antes da chegada da noite completa, que abençoa a terra, escurece todos os rios, recobre os picos e oculta a última praia, e ninguém, ninguém sabe o que vai acontecer a qualquer pessoa, além dos desamparados andrajos da velhice. Penso então em Dean Moriarty, penso no velho Dean Moriarty, o pai que jamais encontramos, penso em Dean Moriarty”.
Foto: Billie Holiday.
On The Road
Nem sempre posso ou tenho capacidade para fazer a resenha de um livro. Mas, a partir de agora, colocarei a sinopse deles. Fica valendo até como indicação. Pra esse último, fiz um texto maior. Quem não tiver paciência, lê somente isso aí embaixo.
On the Road:
On the Road:
Narrado em primeira pessoa, a obra de Jack Kerouac conta a historia de Sal Paradise pelos Estados Unidos da América. No desolado mundo pós-guerra, o jovem, juntamente com o seu grande amigo (talvez o único a quem realmente tenha amado) Dean Moriarty, embarca em aventuras que anos mais tarde influenciaram toda a geração dos anos 60. Desprendidos de projetos para o futuro, rompendo com as rígidas relações sociais, com toda e qualquer fronteira, os jovens se entregam sem limites ao presente, a intensidade do momento e ao desconhecido. O que realmente vale e existe é a estrada - local onde tempo e espaço se fundem para reger a descoberta de novos mundos. No coração daquela América, divida pela falência moral do Leste e pelas promessas sonhadoras do Oeste, não existiam pontos de chegadas, somente de partidas, do ir sempre além e além. On the Road é assim uma fotografia dinâmica de um mundo prestes a explodir e erradicar o velho, o obsoleto. Mais de seis décadas depois, a força do livro mantém-se intocável. Recomendo para jovens e velhos desde que tenham a grandeza dos bêbados, dos aventureiros e até dos medrosos.
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domingo, 27 de março de 2011
Pedro Archanjo
"Amanhã será conforme o senhor diz e deseja, certamente será, o homem anda para a frente. Nesse dia tudo já terá se misturado por completo e o que hoje é mistério e luta de gente pobre, roda de negros, mestiços, música proibida, dança ilegal, candomblé, samba, capoeira, tudo isso será festa do povo brasileiro, música, balé, nossa cor, nosso riso, compreende?" (Tenda dos Milagres, Jorge Amado)
Foto: Vitor Sá. Retirada daqui ó: http://br.olhares.com/preto_velho_foto1126977.html
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quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
Conforme o ritmo.
Um escritor que faz você se sentir bem depois de ter lido cinco páginas que variam de alhos para bugalhos sem te dizer absolutamente nada e, no parágrafo seguinte, dá uma risadinha mafiosa do tipo: “Tudo o que escrevi até aqui é rigorosamente desnecessário para o que vou contar” não é tão somente um escritor. É um dominador de mentes. Assim, no sentido cru, duro e sem nenhum respaldo científico – até porque psicologia está mais para Domingo do Faustão do que para ciência. Puros gracejos que debocham na cara do leitor, saltando-lhe os olhos com certa empáfia, sem correr o mínimo risco do espalhafatoso ou da ojeriza generalizada, exigem técnica apurada com doses de malícia e risadinhas de canto de boca. Com esse arsenal, na literatura brasileira, só conheço um: Machado de Assis.
Em Histórias Sem Datas, livro de crônicas que acabei de recostar na estante, ele surpreende. As narrativas são tiradas da realidade. Da realidade que existe na cabeça do pensamento Machadiano. Ou seja, um turbilhão delas, todas misturadas, ultrapassando a mera interpretação daquilo que comumente se distingue entre o real e o irreal, a verdade e a fantasia. Como num mergulho a esse universo, tudo ali se des - assenta de tal forma que qualquer pessoa pode legitimamente sentir que está diante de um tratado sobre a loucura ou de um manuscrito escrito por um louco. Nada ali parece fazer muito sentido, ter muitas conexões com o que existia naquele Brasil do final de 1800. Mas, claro, aí nesse acesso de insanidade nasce o fundamento de sua obra e as maneiras que Machado utilizou para falar de, sei lá, um par de botas, de forma completamente universal.
Universal e atemporal. Conhecendo um pouco das suas obras, dificilmente ele escreveria um livro com esse título se, de fato, acreditasse na probabilidade de que seu texto pudesse ser datado. Datado pela época ou pela própria decadência que perfaz a humanidade. Não se trata efetivamente de uma visão fatalista, fixada nos construtos do determinismo. Tampouco se é uma previsão rasa baseada na crendice de que a humanidade não tinha e também não terá jeito, logo tudo o que está escrito ali se torna do mundo e de todos para sempre. O que pensou, conjecturou, se fundamenta no profundo rigor com o qual analisava as pessoas, em todas as partes, no seu íntimo, no seu coletivo, nas suas esferas de pertencimento e de existência. Pois bem, tanto conhecimento, leitura, excesso de sensibilidade e medidas razoáveis de genialidade e dom (sim, porque ninguém aqui pode acreditar que todo mundo pode ser qualquer coisa se educado para isso) é o que permite deboches tão simpáticos como aqueles citados no comecinho do texto. Atinge sua alma e, se ele tiver com a minha, deve doer mais do que exame de sangue. Ou menos, já que agulha nenhuma me fura desde 1998.
Fato que falar, falar e falar, para depois dizer: você nem sabe o que eu vou dizer ou o que eu sou, dialoga perfeitamente com o meu ideal de vida. Quer dizer, a melhor maneira de manter o íntimo preservado é se expondo. Porque, consciente dessa tarefa, você a executa da forma como lhe é conveniente, criando representações do que bem deseja, do que bem quer e de como quer, saliente-se. E, pra evitar contrapontos do gênero você-não-é-você-mesmo ou isso-não-é-muito-original, devo confessar que a melhor maneira de se auto-pertencer (nossa, estou profundo) é pertencendo aos outros exatamente da forma e da medida que você gostaria de ser pertencido. É isso, faz tanto sentido quanto o livro de Machado, mas, sob hipótese algum, o sentido poderia ser mais claro.
Abaixo trechos que eu selecionei com critérios mais frouxos do que a vontade de comer temaki num sábado à noite.
Tu és vulgar, que é o pior que pode acontecer a um espírito da tua espécie, replicou-lhe o senhor. Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires. Olhas; todas as minhas legiões mostram no rosto os sinais vivos do tédio que lhes dá. Esse mesmo ancião parece enjoado; e sabes tu o que ele fez?
- Já vos disse que não.
- Depois de uma vida honesta, teve uma morte sublime. (Página 15)
“Rigorosamente, todas estas notícias são desnecessárias para a compreensão da minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma coisa, antes de entrar em matéria, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a rédea à pena, e ela que vá andando, até achar entrada. Há de haver alguma; tudo depende das circunstâncias, regra que tanto serve para o estilo como para a vida; palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as suas espécies. (Página 77).
“Tinha obrigações morais com a sociedade; ninguém se pertence exclusivamente; daí um pouco de dispersão dos seus cuidados. A verdade é que tinham vivido demasiadamente reclusos; não era justo nem bonito. (...). Este foi, talvez, o ponto mais fraco da vida do meu amigo. Não tinham idéias políticas; quando muito, dispunha de um desses temperamentos que substituem as idéias, e fazem crer que um homem pensa, quando simplesmente transpira.” (Página 104)
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terça-feira, 30 de novembro de 2010
Adeus, novembro!
Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto, melhor é que te cales e te retires.
|.(Machado de Assis me consome).|
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Rigorosamente, todas estas notícias são desnecessárias para a compreensão da minha aventura; mas é um modo de ir dizendo alguma coisa, antes de entrar em matéria, para a qual não acho porta grande nem pequena; o melhor é afrouxar a rédea à pena, e ela que vá andando, até achar entrada. Há de haver alguma; tudo depende das circunstâncias, regra que tanto serve para o estilo como para a vida; palavra puxa palavra, uma idéia traz outra, e assim se faz um livro, um governo, ou uma revolução; alguns dizem mesmo que assim é que a natureza compôs as suas espécies. (Machado de Assis, Histórias Sem Datas)
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quarta-feira, 17 de novembro de 2010
Morreu poeta
Só soube hoje que Ildásio Tavares, poeta baiano, um dos meus preferidos, morreu no começo de novembro.
Não existe hora certa, existe o meu relógio,
Lembrando sempre com seu tic-tac
Que há vida
Para ser vivida,
Que houve a vida
Que não se viveu.
Não importa que o rádio renitente ruja
São tal hora e tal minuto
Hora oficial,
Afinal.
Que há de oficial em minha vida?
Somente,
Quebrando a paz exata deste espaço,
Levando a mim à frente, sem retorno,
A tiquetaquear meu ser-serei,
Existe o meu relógio, –
pulso falso,
Sensato solilóquio, lento certo,
Que canta
O canto
Do tempo
Que é meu
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sexta-feira, 5 de novembro de 2010
quinta-feira, 28 de outubro de 2010
Estou pura poesia. Estou pura cafonice. Aceito o risco. Como todo mundo que vive, aceito o risco.
O que o vento não levou...
No fim tu hás de ver que as coisas mais leves
São as únicas que o vento não conseguiu levar:
um estribilho antigo,
um carinho no momento preciso,
o folhear de um livro de poemas,
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...
Mário Quintana
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O que faz andar a estrada?
É o sonho.
Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva.
É para isso que servem os caminhos,
para nos fazerem parentes do futuro.
(Mia Couto)
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quarta-feira, 13 de outubro de 2010
Era assim como a borboleta
Se algum dia na vida eu fosse ter filhos, eles, parafraseanedo aquelas comunidades toscas de rockeirinhos do orkut, leriam Charles Dickens. Minha infância para sempre carregará esse espaço vazio de mundo. E seria cruelmente calculista se fizesse alguém padecer da mesma sina.
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Errante navegante, por mais distante, eu jamais te esqueceria.
Ao regressar do outro lado da montanha, João Celestioso, com o vagar próprio dos sábios e dos homens mais sensíveis às reflexões sobre a existência, deixa-se saborear pela força de suas palavras: “Afinal, tudo são luzes e a gente se acende é nos outros. A vida é um fogo: nós somos suas breves incandescências”. Como num grandessíssimo espetáculo dado as atuações intensas, capazes de nos rasgar em humanidade e de nos encetar pelos caminhos dos mistérios que perfazem o nosso “ser”, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (Companhia das Letras, pgs. 262, R$ ?) , do escritor Mia Couto, é uma convocatória do descobrir-se.
Descobrir-se indo ao âmago daquilo que nos faz existir, descobrir-se pelas alegrias e pesares alheios, descobrir-se retirando de si o que encobre e o que torna distante. Descobrir-se é também um exercício de imiscuir no íntimo aquilo que o poeta uma vez chamou de “Sentimento do Mundo”. É dessa convocatória que se começa a partilhar quando nas primeiras páginas, Mariano, jovem universitário, embarca rumo à sua terra natal com o objetivo ardiloso de comandar a cerimônia fúnebre de seu avô, Dito Mariano. A África, ventre da humanidade, torna-se aqui o terreno da partida, da chegada, do encontro e da vida que se acende e se incendeia com tudo. Metáfora de si, do mundo e da existência, apresenta-se como a mãe condutora do enredo preenchendo-o com cantos escuros, com os mistérios mais difíceis e com a necessidade veemente de viver. A esse desafio, Mariano entrega-se.
O cenário, Luar-do-Chão, que por natureza nos impele para a sensação de que contemplar o distante é ilusão, uma vez que ele está sob os nossos pés e alcances, é Moçambique, terra de Mia Couto. Quem espera ver no país, resumido pela obra na rígida fronteira cidade-ilha, a pobreza generalizada, vista, revista, filmada e fotografada pelas lentes ocidentais, se surpreende com riqueza. Com riqueza de histórias, de personagens, de misticismo e de tradições e de valores de um mundo que já não é, mas que segue pulsante. A surpresa, entretanto, não permite cair em ilusões e na fuga – é ficção, mas existe um real sendo representado, dando pistas imprescindíveis para falar de um povo e de suas vivências. Assim é que, mesmo não se tratando de um texto assentado na crueldade do realismo, na denúncia explícita das questões envolvendo África e seus filhos, a pobreza, a miséria social – muitas vezes imbricada na miséria humana-, a relação de exploração bem como a busca infinda pela dominação daquilo que está além do nosso poder, são elementos que interferem no desenvolvimento da trama e no desenrolar de seus conflitos. Uma noção de interferência, a bem da verdade, amplificada, posto que Luar do Chão e a cidade esboçam e traduzem o mundo verdadeiro (é possível mesmo haver essas distinção?) e os seus (des) encontros.
Costurada por frases que, muitas vezes, parecem ter sido talhadas pelas mãos negras dos canaviais, rasgando-se na busca por ritmos e cadências particulares, a obra resvala-se no universal. É uma luta permanente entre permanecer resistindo e se entregar os desvarios da cobiça, da ganância e de todos os elementos que afastam o homem do seu descobrir-se. Assim é que o regresso de Mariano da cidade, completamente lavada pela água do capitalismo moderno, à Luar de Chão expõe o confronto dos universos. É um dilema que se coloca acima de reproduzir, grosso modo, o maniqueísmo da literatura oitocentista européia. Não é escolher entre o bem e o mal, mas entre ir ou não ao essencial, ao essencial que, como pronunciou o português Saramago, é “invisível aos olhos”.
Nessa briga, permeada pelos ditames do pós-colononialismo, é como se ao mundo inteiro fosse feito o pedido bíblico de voltar ao pó, de se reduzir para renascer verdadeiramente grandioso. Assim é que a cega Miserinha, a mãe Mariavilhosa, a avó Dulcinesa, o pai Fulano Malta, o avô e diversos outros que,como João Celestioso, nem adentram de fato na narrativa, seguem a risca essa empreitada. Aos poucos, os enigmas por trás da morte do avô e o passado, que, de forma recorrente, é objeto de esquecimento e de lembrança, se fundem para um tempo muito próprio: o tempo da existência. É desse ritual que os personagens, no confronto por despir-se e se achar, compartilham.
Evidente que todo esse jogo recai sobre muitas metáforas, artífices importantes para a compreensão do nosso mundo independente de fronteiras entre ilhas e cidades. Couto, também autor do magistral Terra Sonâmbula, faz uma leitura da existência humana sobre a terra a partir da contemplação do que lhe é mais caro: o rio, as árvores, o céu, a terra, o ar tocando as rugas do rosto e o fogo incandescente, dono da vida. Os próprios nomes atendem a esse propósito, aqui construído de maneira aparentemente despropositada. Na casa intitulada Nyumba-Kaya, transcorrem os mistérios dos homens. Essa casa, transformada em personagem tamanha sua força e vestígio de humanidade que possui, nada mais representa do que a própria terra, tal como nos indica o título original da obra. Mas, afinal, foi dado ao ser humano a possibilidade de encontrar algo no seu “descobrir-se”? O que exatamente se poderia encontrar nessa busca tão confusa, sem regras ou caminhos estabelecidos?
A estas perguntas, numa das secretas cartas, o protagonista nos responde questionando: “A terra pode amolecer por força do amor?”. E, logo em seguida, nos dá o ponto de partida e de chegada de todos os demais personagens da história: “Só se o amor for uma chuva que nos molha a alma por dentro”. Adiante, esclarece: “A chuva é só uma. É sempre a mesma chuva, apenas interrompida de quando em quando”. É para esse momento de interrupção que Mia Couto nos propõe a travessia. Religar os fios do mundo para nos entender e nos fazer des-cobrir da nossa loucura e da indiferença cotidiana. Pintá-lo com as cores da beleza, demovendo-lhe da feiúra, da mesquinhez, da sua pobreza, fazendo-o respirar, enchendo rios com esperança. Do ideal leve e, ao mesmo tempo, comprometedor de perceber que encontrar a vida em outro lugar é encontrá-la em si mesmo, sumindo, reforçando-se e se alimentando dessa seiva que emana da mãe terra e do senhor tempo. “Da seiva amor”, nos diz.
Frases bonitinhas pescadas do livro.
“Quando já não havia outro tinta no mundo
Frases bonitinhas pescadas do livro.
O poeta usou de seu próprio sangue.
Não dispondo de papel,
Ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz,
O rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem foz nem nascente”
“Sou como a palavra: minha grandeza é onde nunca toquei.” Avô Mariano.
“-Por que demoraste tanto?
-Não fui eu, Tia. Foi o tempo”.
“Não quero sair nunca mais.
- Tem medo do que?
- O mundo já não tem mais beleza.”
“O mundo já não era um lugar de viver.
Agora, já nem de morrer é”. Avô Mariano.
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