segunda-feira, 26 de abril de 2010

Uganda é como o mundo todo

Quando o Fantástico exibiu ontem a reportagem sobre a perseguição dos gays em Uganda e, de um modo geral, no continente africano, não deu para contar quantos machões brasileiros coçavam o saco e se regozijavam com o projeto de lei que prevê pena de morte para homossexuais assumidos. É sempre recorrente, até pela facilidade de expor as feridas alheias, mostrar no outro os seus piores e mais graves defeitos. No Ocidente, externalizar a superioridade cultural, política e cognitiva não é exatamente um recurso novo, embora, com uma freqüência assustadora precisamos admitir, as roupagens tornam-se mais finas. 

Como é sabido por metade das pessoas que concluíram razoavelmente bem o segundo grau, o pressuposto de que o homem, branco, europeu está notadamente há anos luz de qualquer outro povo foi exatamente o pretexto necessário para estraçalhar com a África. Começou no século XVI com os ibéricos e terminou (?) no século XX com a concretização da repartição africana pelo Velho Mundo, pensada nos anos de 1870, com a Conferência de Berlim e sumariamente executada nos idos da Primeira Guerra.

Tendo em vista que o imperialismo das potências ocidentais e todas as demais políticas/estratégias de controle da África marcaram a constituição cultural daqueles povos é, minimamente, curioso que o Ocidente busque se eximir de sua culpa quando ele mesmo pinta o quadro de vulnerabilidade, autoritarismo e desgraças ininterruptas que se abatem sobre o continente. No momento em que abomina a legislação de Uganda é indissociável a visão determinista que cerceia nossas concepções acerca do povo africano: selvagens, atrasados e abomináveis. E, certamente não é por radicalismo infantil, mas pela história que se passa, que não dá para se furtar sobre as questões raciais.

Afinal, existiriam outros termos para chamar os jovens universitários da Faculdade de Farmácia da Usp que incitaram os colegas a jogarem “merda” nos “viados” senão de selvagens, atrasados e abomináveis? Certamente não. Mas a nossa moral torta de classe média católica pedófila, no máximo, consegue arrancar apenas comentários de tudo não passou de uma brincadeira de mau gosto, um mal entendido sem intenções de fomentar a homofobia. E o que dizer da bomba jogada no final da parada gay de São Paulo no ano passado? E dos grupos neozistas que assolam o continente europeu? E dos grupos conservadores dos Estados Unidos que preferem 10 torres gêmeas caindo no meio de Nova York a ter um gay no Congresso Nacional?

No final de Manderlay, trilogia de Lars Von Trier sobre a sociedade capitalista, Gracie, a mocinha branca, ao ver seus esforços de ajudar no desenvolvimento e emancipação de uma comunidade negra, que supostamente não quer ser ajudada nem emancipada, minguarem, toma pelas mãos o chicote e açoita-os no tronco. Num ato de fúria que parece justificar-se frente a selvageria e atraso daquelas pessoas, Gracie, fielmente representada na boa interpretação de Bryce Dallas, desconta sobre eles as suas verdades. Ao passo que o negro chicoteado, olha solenemente para ela e esclarece: “Só não esquecem de que foram vocês que fizeram isso com a gente”.

O que nunca é percebido no sublime absurdo alheio é o nosso próprio absurdo. Apesar de milhões nesse país e nesse mundo branco ocidental terem aprovado com louvor as medidas desastrosas do parlamento de Uganda, que ainda nem foram de fato aprovadas, o inferno é sempre os outros. E na história do mundo que nos contam, o inferno é sempre a África. Das boas intenções do Ocidente, o mundo já está cheio.



segunda-feira, 19 de abril de 2010

É um pouquinho de Brasil, iá iá



Na hora clamada
o grito que lança
afronta
é pra mudar
Não demora
tudo muda
Na ruas, escolas,
a mão que, enfim, levanta
contra arrogância
é pra muda
Quem segura essa marcha??


Brasilha das Trevas

“O agente Barcelar foi até a cadeira, em que eu permanecia sentado, pegou pela minha camisa, me jogou com violência no chão, e iniciou uma série de murros na cabeça e chutes. Junto com outro agente da polícia civil, me arrastou pelos cabelos até a cela, onde lesionei a coluna na barra de ferro que estava no chão. O agente bateu a porta e disse que eu era um merda e que iria apanhar mais.”

O relato de Diogo Ramalho, estudante de Letras Espanhol da Universidade de Brasília (UNB), é o próprio retrato da democracia enfraquecida. As cenas de brutalidade, descritas na agressão física, covarde e desproposital, mostram como funciona o aparato de (o) pressão das nossas vias, ditas, democráticas. No último sábado, dia 17 de abril, estudantes, trabalhadores e cidadãos e cidadãs advindos de diversas localidades se aglutinaram em Brasília com o intuito de protestar contra a eleição do sucessor de José Roberto Arruda, ex-governador, cassado no dia 10 de março. O resultado da manifestação foi a cereja do bolo no calendário de celebração dos 50 anos da capital do país: autoritarismo, pancadaria e algumas lições sobre mudar o rumo desses ventos.

Logo após a vigília lúdica, iniciada na sexta-feira, convocada pelo Movimento Fora Arruda e Toda Máfia em frente à Câmara Legislativa do Distrito Federal, o grupo ateou fogo em pneus nas ruas que davam acesso à Câmara, interditando-a por dez minutos. Com o começo da sessão, em que 10 parlamentares/suplentes dos 24 votantes foram flagrados na mesma operação que conduziu a gestão de Arruda à bancarrota, os manifestantes tentaram entrar na galeria. Conforme reza o ideal democrático, a transparência e a visibilidade pública concernente à esfera política de decisão é pedra basilar para o bom funcionamento do regime. No Brasil e, aparentemente com maior recorrência nas consolidadas democracias ocidentais, essa crença é o nosso canto da sereia.

Para se ter uma clareza da chacota montada para essa escolha, basta saber que uma das principais lideranças votantes, Geraldo Naves, havia deixado a penitenciária somente há quatro dias sem dar qualquer contraprova à sociedade sobre o envolvimento no esquemão de pagamentos/suborno de parlamentares. Chefiando essa quadrilha, estaria o próprio Arruda, repassando o dinheiro oriundo de empresas que faziam negócios com o governo: Info Educacional, Vertax, Adler e Linknet. Os deputados suspeitos de serem beneficiários do esquema são Leonardo Prudente, Rogério Ulysses, Eurides Brito, Pedro do Ovo, Rôney Nemer, e o presidente do PP no DF, Benedito Domingos. Arruda teria também se beneficiado pessoalmente, com pagamentos quinzenais de 50 mil reais, além de conseguir empregos para parentes e amigos, como seu filho, nas empresas do esquema, e de ter o apoio da empresa pública Codeplan com contribuições eleitorais e na construção de uma casa luxuosa em Brasília para si e políticos aliados, entre os quais o vice-governador, Paulo Octávio.

Arruda deixa o DEMO, mas o DEMO não deixa Arruda

Embora o ex-governador tenha sido flagrado recebendo um maço de 50 mil, num vídeo que correu o mundo chafurdando na lama o pouco que sobrou de nossa ética, a única justificativa encontrada pelo político era de que o dinheiro se destinava à compra de panetones para os pobres de Brasília. E apesar de nenhum pobre de Brasília ter se lembrado de que comeu panetones no Natal de 2006, certamente todos tiveram indigestão com essa justificativa. Mesmo após a cassação numa votação apertada no Tribunal Regional Eleitoral (4 contra 3), que, cabe destacar, se deu por desfiliação partidária (Arruda deixou o DEMO em 10 de dezembro) e não por corrupção, a celeuma sobre a chefia do governo prosseguiu. E, uma vez perdido o controle da situação, a manutenção da ordem dependia de um único comando: bater, bater e bater.

Os movimentos sociais, em profunda crise política, articularam algumas frentes de atuação encabeçada pelo espírito contestador dos jovens universitários. Não apenas tendo que enfrentar os moinhos de vento, em cenas que relembram o romance de Cervantes, a aliança entre trabalhadores e estudantes precisava e, ainda precisa, lidar com a fúria e a brutalidade da polícia criminosa. “Esses baderneiros devem ser todos viados”, “Ao invés de estarem em casa, fudendo uma mulher, estão nas ruas protestando”, “O que você tá fazendo aqui seu merda?”, e outras frases só pronunciavam por polícias militares do Brasil perfaziam o nível do diálogo travado entre a força bruta e a força participativa. Por diálogo, entenda-se massacre.

Com a praça de guerra instaurada fora da Câmara, a votação prosseguiu na paz do ar-condicionado. E, para surpresa geral da nação, o ex-membro da administração de José Roberto Arruda, Rogério Rosso (PMDB) foi eleito em primeiro turno com 13 votos dos 24 deputados que votaram na eleição indireta. Ele venceu o candidato do PT, Antonio Ibañez (PT), que teve seis votos, e o atual governador interino, Wilson Lima (PR), que teve quatro votos. Somente um deputado se absteve de votar. E, acredito que não por idealismos, mas por falta de opção mesmo. Parabéns, Brasília.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

do outro lado do muro


Havia terminado, por fim, a esperança de um dia pertencer. Nenhum lugar de seu agrado, nenhuma pessoa de seu carinho, nenhum sentimento de euforia explosiva. Nada parecia existir para além de seus breves contentamentos. Queria ser como o horário fora do relógio ou talvez como a estrada proibida guardando caminhos, matas e ribeirões de cores límpidas. Era para esse desejo insolúvel que se entregava.
A canção do rádio celebrava a intensa melancolia do encontro da chuva com o vidro. E era tudo como uma prisão: silenciosa, entrecortada pelas raivas e cerrada no estampido de certa monotonia. Quando se dava conta sentia a necessidade criminosa de se calar para seguir adiante. Por essa condição é que naquela noite sentiu em seu corpo uma solidão devastadora. Sabia que em breve precisaria de caminhos e de partidas. Nos pequenos olhinhos marejados pela fúria , via-se que tudo não poderia passar de uma grande ilusão, cheia de inconseqüências e de vontades inconciliáveis. E isso, acreditava, era então o não pertencimento.

quarta-feira, 7 de abril de 2010