
De uma sociedade patriarcal, escravista e ruralista, seria quase desrespeitoso exigir que nossos pretos velhos, avós, bisavós, tataravós, e toda a árvore genealógica brasileira conseguisse criar e reproduzir, via tradição oral, contos populares que não carregassem em seu bojo a discriminação, a violência bruta (pleonasmo? talvez), o machismo, racismo e todas aquelas formas de opressão que temos aprendido desde que o marxismo se fragmentou em estudos de grupos e de causas específicas. A compilação feita, nos primeiros anos século XX, por Sílvio Romero, intelectual brasileiro de então, sobre as origens da nossa história popular é realmente um legado imprenscidível para a nossa compreensão enquanto povo. É claro que não se trata apenas de abrir Contos Populares do Brasil e aceitar sem objeção aquelas histórias fantasiosas que tomam lugar nos trópicos, em meio a selvas, bichos, relações primitivas, reis, rainhas, fadas, castelos e reinos. Para não falar em termos mais academicistas, como fundamentação teórica ou base de argumentação, a proposta ali é bem objetiva: um resgate dos principais contos populares brasileiros, que permeiaram nossa formação cultural e que contribuiu decisavamente para a entender a nossa relação de pertencimento a esse povo. Algo parecido, mais famoso e, desculpa os chauvinistas, mais legal e cativante, é a trilogia de Galeano, Memória do Fogo (aceito de presente).
Por hora, se estamos falando de oralidade e de formação cultural no Brasil, é preciso que se tenha em mente o tripé: negro, índio, português. E, posteriormente, o mestiço. Essa divisão absolutamente rígida e também absolutamente questionável, já que deixa todo índio, negro e português sendo igual, massificando-os, é até aceitável para a época em que a discussão sobre povo brasileiro estava numa fase pré-embrionária diante de condições sócio-políticas (com ou sem hífen?) pouco favoráveis a qualquer aprofundamento e trabalho teórico-intelectual. Para Sílvio Romero, foi o português quem forneceu a genética do povo, enquanto que as outras culturas, contribuiram num ou noutro aspecto, mas sem abalos maiores na estrutura que vinha da Europa. Ok, se foram os portugueses que nos deram a maior contribuição e sabendo que os que vieram para cá eram ladrões, corruptos, aventureiros, degredados, ignorantes, personalistas, etc, etc, podemos começar a entender porque construimos esse caminho dessa forma.
Na tradição oral, de fato, é absolutamente inquestionável a absurda preponderância do s elementos lusos. A cultura popular que, numa perspectiva gramsciniana, é simbolica e materialmente, resistência à cultura hegemônica de uma época, é também prova cabal de que num sociedade de classes, de disputa e de tensões, não há como sair incólume. Assim é compreensível que em contos populares oriundos de Sergipe, Pernambuco, Rio de Janeiro, etc, apareçam personagens com características notadamente européias, em cenários inimagináveis na realidade dura e quente dos países abaixo da linha do Equador, em situações completamente distoantes do cotidiano, mas que mesmo assim não deixam de ser brasileiras na sua forma mais elementar. Os contos são moralistas? São. Racistas? São. Privilegiam o ganho fácil? Sim. A malandragem pura e desavergonhada? Sim. Condenam as mulheres a serem amarradas em quatro burros para estraçalharem-se em público?Sim. Coisa mais brasileira que isso impossível.
A estrutura da narração é curiosa. Funciona sempre assim: havia três moças, três homens, três animais, três rios, três reis, três carpiteiros, três bruxas, daí os dois mais velhos sempre cometem os pecados mais óbvios do tipo abrir mão da benção paterna em troca da fortuna familiar, e o mais novo, que aparentemente tem todas as condições favoráveis a se aventurar pelo mundo levando a vida no imediatismo, da forma mais Cigarra possível, recusa a fortuna e oh, que surpresa, aceita a benção do pai. A narrativa se complica, entra em cena a repetição maciça, reproduzindo a lógica infalível da educação do povo pela lavagem cerebral, e quando o conto se aproxima do desfecho e as saídas parecem se complicar para o desequilíbrio total, a solução aparece de pronto na última linha, de maneira super faceira, encarnando aquele jeitinho brasileiro de se resolver os problemas do universo.
Os contos de origem portuguesa são sempre marcados pelo ar medieval e pelo tom quase épico, ainda que as influências locais sejam inegáveis: punição severa para quem merece ser punido severamente, dias dourados para os bons e despreendidos. Os contos de origem indígena, ao contrário da irresistível vontade que nosso inconsciente sempre tem em percebê-los com anedotas de Sol, Lua e Tupã, tem outros critérios de abordagem que não necessariamente a explicação do universo. Há na prosa indígena o caráter pedagógico também. Ensinamentos e, em certa medida, aquela moral que para nossa moral torta seriam só conselhos e endereçamentos desprovidos de conteúdo ou apelo científico - sub. O mesmo argumento para os de origem africana. Nada de Oxum, Oxóssi, Xangô brigando com Ogum por Oyá. Há uma ênfase na humanização de animais, o que, de certa forma, priva os homens do constrangimento da realidade.
Romero opta por não fazer grandes interferências naquilo que foi transmitido, preservando a natureza das histórias e fazendo o impossível para mantê-las com certa coesão e interesse. Mas de boas intenções, o Brasil estava tão cheio que mandou algumas para Lisboa. Seu Manoel, editor de esperteza admirável, estagnado no colonialismo e não satisfeito em promover o maior saque da história humana, se apropriou de vários contos brasileiros, alterou a naturalidade, sufocou deliberadamente os negros e índios do processo e ainda agradeceu a Romero pelo presente. Lamentável, não? Pior mesmo é saber que a escola brasileira nunca deve ter feito uma única menção ao livro, nem como indicação, como curiosidade, como tentativa de educar os burrinhos falantes. Nada. E o que me deixou mais desiludido nesse embróglio todo foi saber que aquela história linda, que mexia com minha consicência, que me atordoava provocando fúria, de que o urubu tinha sacaneado com o cágado na volta da festa do céu NÃO tem nada de criação única da minha pró do maternal. 20 anos de enganação. Mais brasileiro que isso, realmente, é impossível.