Nessas duas últimas semanas, andei por toda cidade entrevistando pessoas para um caderno especial que o jornal vai fazer. De todas as pessoas com quem falei, eu destaco duas: Iracy Picanço, da Faculdade de Educação da UFBA, e Vilma Reis, uma intelectual negra também da UFBA.
Iracy é uma senhora simpática até o último fio de seus cabelos brancos. Pedi dez minutos e levei uma hora. Ele falou sobre tudo, tudo mesmo. Lá dos tempos em que conviveu com Anísio Teixeira, com Paulo Freire, com Fernando Henrique, lá dos tempos em que tinha 15 anos de idade e dava aula para alunos de baixa renda, dos tempos em que sofreu um auto-exílio no Chile, de como ficou desempregada com o ato institucional. E falou tudo isso com uma precisão e uma clareza admirável. E também não preservou Lula. E eu adoro quando as pessoas não preservam Lula. Porque no Brasil parece que as pessoas que se diziam de esquerda sofreram todas de uma amnésia coletiva ou então de um cegueira, dessas que nos fala o Saramago. Não que as teorias tenham que ficar estáticas e incólumes ao longo dos séculos, como alguns desejam, mas falar do Collor, do Fernando Henrique e não falar do Lula é demais, né? Aí é demais. Mas Iracy não é só análise. Eu acho que nunca vi uma pessoa com os seus sessenta e poucos anos falando de esperança na humanidade com tanto entusiasmo como ela. Eu realmente nunca vi. Até porque a tendência é sempre o oposto. Mas Iracy fala e fala de tal forma que faz você acreditar. No final, ela me deu um abraço apertado e “volte sempre, volte sempre”.
Ontem, depois de muito ligar, marcar e remarcar, consegui entrevistar Vilma Reis. Eu conheci Vilma na II Conferência de Intelectuais Negros da África e da Diáspora, que aconteceu aqui em Salvador em 2006. Pelo que percebi do evento, as delegações estrangeiras eram compostas em sua maioria por mulheres e homens altamente bem vestidos e que exalavam perfume de dinheiro. E aí você se pergunta: onde está a população negra pobre que de fato é marginalizada e oprimida? Quer dizer, é melhor não perguntar porque vai que uma dessas pessoas respondem “estavam sem dinheiro” e te acusam de racista e essas coisas todas. Fato que do II CIAD, a palestra de Vilma Reis foi a melhor, a mais precisa, explicativa, etc, etc. As outras ficavam mais no: “os negros sofrem racismo, o racismo é ruim, logo vamos acabar com o racismo”. O que mudava era o sotaque e a capacidade de ordenamento das idéias, o que fez com que volta e meia surgisse uma participação constrangedora, tipo Toni Garrido. Mas Vilma falava com muita emoção, com as palavras incisivas e apresentou dados e soluções concretas. Ontem na entrevista, senti a mesma coisa. Apesar de ser uma intelectual negra respeitada e conhecida, me parece que ela não se deixou levar pela vaidade, coisa muito comum em ambientes acadêmicos provincianos em que os professores praticamente dão a vida para ganhar uma bolsa do CNPq. Vilma pensa o país, mas sem sair da sua condição de povo, da sua condição de mulher negra. Vilma também foi empregada doméstica, mas diferente do que algumas pessoas que tocaram a calçada da fama através do movimento negro, ela não usa da sua condição de ex-emprega doméstica para dizer: “Olha, ta vendo como é possível? Todo mundo pode! Eu já limpei o chão e hoje estou aqui”. Não. O fato de hoje ser intelectual serve para denunciar a condição de exploração de todas as domésticas, que tão comumente são sexualizadas e viram a primeira puta na vida dos filhos de seus patrões.
E Vilma é do tipo que diz que entre esquerda e direita é preta, do tipo que mesmo tendo uma atuação em instituições internacionais reconhecidas fala como uma mulher do recôncavo, do tipo que mesmo tendo lido dezenas de autores influentes deixa claro que a maior influência que sofreu em toda a sua vida foi a de sua avó. E eu gosto de intelectuais assim, que pensam, atuam, transformam e conseguem viver na realidade, se recusando a ficar trancafiados em salinhas cômodas, climatizadas e limpinhas, engolindo Platão, arrotando Gramsci e suspirando Eco.
E Vilma é do tipo que diz que entre esquerda e direita é preta, do tipo que mesmo tendo uma atuação em instituições internacionais reconhecidas fala como uma mulher do recôncavo, do tipo que mesmo tendo lido dezenas de autores influentes deixa claro que a maior influência que sofreu em toda a sua vida foi a de sua avó. E eu gosto de intelectuais assim, que pensam, atuam, transformam e conseguem viver na realidade, se recusando a ficar trancafiados em salinhas cômodas, climatizadas e limpinhas, engolindo Platão, arrotando Gramsci e suspirando Eco.
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