O primeiro atingiu a pálpebra esquerda, trazendo-lhe o desconforto de estar no mundo. O outro caiu vertiginosamente contra a estrada que seguia. Vendo-o se transformar em nada, se desfazendo diante daquilo que poderia ser a imensidão, sentiu o infortúnio de rasgar-se em vida. E agora que existia, poderia contar algumas histórias
Quase um ano depois de se apresentar pela última vez na Argentina, Caetano Veloso trouxe novamente, na noite deste domingo (02), para Buenos Aires o aclamado show Abraçaço. A turnê, que vem rodando o mundo e recebendo críticas positivas na imprensa nacional e internacional, foi bem recebido pelo público porteño que lotou o Estádio do Luna Park numa noite fria e chuvosa. No repertório, canções atuais como "A Bossa Nova é Foda", "Um comunista", homenagem ao baiano guerrilheiro Carlos Marighella, "Parabéns", "Império da Lei", se revezaram com os clássicos cantados em coro pelos argentinos: "Leãozinho", "Baby", "Você não entende nada". Um dos pontos altos foi quando o baiano cantou quase à capela Tonada de Luna Llena, do compositor venezuelano Simón Diaz.
Caetano, que desde o início da "trilogia rock", em 2006, é acompanhado pela versátil Banda Cê (Pedro Sá, na guitarra, Ricardo Dias Gomes, baixo, e Marcelo Callado, bateria) reafirmou porque é considerado um dos principais nomes da música mundial. Com uma voz quase irretocável e com swing discreto, a apresentação de quase 2h seduziu pelo vigor e pela capacidade constante que o músico tem de se renovar e de apresentar coisas novas: das letras tristes, pesadas, a uma sonoridade carnavalesca.
Diferente da apresentação anterior, em que foi ovacionado por quase 25 minutos, o baiano quase não falou. “Estoy feliz de estar otra vez en Buenos Aires” e "muchíssimas gracias" foram dois dos poucos momentos de interação direta com o público. Mesmo assim, voltou ao palco duas vezes e encerrou repetindo como um espécise de mantra final os versos da música "Desde que o samba é samba": cantando eu mando a tristeza embora.
A turnê latinoamericana segue agora para Santiago, no Chile, retornando para as cidades argentinas de Córdoba, Rosário e Mendoza, nos dias 07, 09 e 11 de novembro respectivamente.
Depois que as mais de 17 câmeras de última geração instaladas em pontos estratégicos do Madison Square Garden, em Nova York, foram desligadas e que a tsunami da euforia levou para casa os 15 mil pagantes de ontem, dia 4 de setembro, é oportuno (e justo) pensar na carreira de Ivete Sangalo. Falado por 11 em cada 10 veículos de comunicação do país, o espetáculo foi, sem dúvidas, o show mais esperado de 2010. Com tantos elogios e, evidentemente, demonstrações explícitas de puxa-saquismo, Ivete pretendia, com esse trabalho, ser um marco brasileiro dentro da cultura de massa americana – algo feito, dentro de seus respectivos quadrados e gêneros , claro, por outro juazeirense, João Gilberto, nos anos de 1950 com a bossa-nova.
Embora se tentasse recobrar, digamos, a lucidez diante de tantas expectativas e devaneios dos milhões de fãs que tem no Brasil, ninguém, nem Ivete, nem Jesus, nem a Caco de Telha, nem mesmo a TAM, escondia que esse seria o salto mais desafiador de sua carreira e a possibilidade ímpar de abrir as portas, ainda muito restritas para a sua música, no exterior. De fato esse era e continua sendo o desafio imposto e que, a julgar pela noite de ontem, está bem longe de ser superado.
Com investimentos batendo a marca dos R$ 5 milhões (Quantos podem bancar essa cifra?), o show no Madison poderia ter primado pela ousadia, pela inovação. Se foi um risco empregar tanto capital (simbólico e material), que, pelo menos, o risco fosse vivido até a última gota. Se foi um desafio e todas essas incontáveis pessoas coadunaram com a possibilidade de enfrentá-lo que se buscassem saídas mais criativas e mais originais. O que se viu,entretanto, pelos vídeos já lançados na internet, pelas informações presentes nos principais meios na manhã desse domingo, é que Ivete optou pelo mais do mesmo, pelo caminho mais seguro e do retorno garantido.
Feijão com Arroz
Mesmo com todos os efeitos, da cenografia, da montagem e de todo preparo exigido na composição do show, a sua essência foi a mesma que a de outros. As canções, inclusive, se repetiam sucessivamente. Certo que num estilo que ainda se pauta pelo “pula, sai do chão”, música conhecida é o elemento mágico infalível para encher de alegrias mil qualquer televisor. Apesar disso, num cenário em que pouco se cria de novo e que, paralelamente, tanto clama por novidades e tem sede de inovação, a ousadia de dominar o público pela surpresa é o que pode, aparentemente, garantir boas transformações e novas musicalidades. Pelo menos, é isso que se atesta nos últimos 60 anos da música popular brasileira.
Não é que estejamos aqui repetindo os argumentos superficiais, pueris, de que é vendida ao sistema, de que é produto, de que é caça-níquel. Da indústria cultural, nem o Teatro Mágico, que diz sobreviver com bilheteria e venda própria de cd’s, escapa. Isso, creiam, nunca foi necessariamente ruim – exceto para Adorno e para a Teoria Crítica. Tantos outros que se vendem como alternativos são muitos mais submissos e entregues aos ditames do mercado do que Veveta. Até porque sejamos realistas: se existe alguém que pode dizer o que quer e o que não quer fazer, hoje, na música brasileira, esse alguém tem nome e residência fixa no Campo Grande, em Salvador (E, não, não é Gal Costa). Não desmerecendo seu talento, mas é desse contexto que surge a frustração.
Frustração pelo feijão com arroz – já tomando parte aqui do álbum homônimo de Daniela para um inevitável e sempre temida palavra: comparação. Costuma-se dizer, na Bahia, que La Mercury é parâmetro para as demais. Longe das rivalidades levianas e da troca de farpas dos fãs mais ardilosos, as comparações quase sempre precisam aparecer para termos referências. E o que a gente nota é que não ter medo de vaias, não ter receio de críticas dissonantes e de entrar num círculo “onde-queres-leblon-sou-pernambuco” é um passo necessário para a reciclagem do artista e da sua própria arte. Por trazer as velhas fórmulas e inserí-las em algo que só é grandioso pelos valores monetários aplicados, essa virada que Ivete poderia trazer foi, novamente, adiada. A cobrança poderia ser exagerada se esse trabalho não se propusesse a tantas complexidades: é uma mulher, latina, nos Estados Unidos, cantando basicamente em português, num formato diferente das ‘divas americanas’, etc e tal - sendo ela, inclusive, melhor do que a maioria desses produtos esterializados.
Tem seu preço inovar? Claro que sim. Pode sucumbir na sua própria loucura ‘vanguardista’? Pode. Pode desagradar fãs, pode até perdê-los, pode conquistar inimigos? Pode. E ser rotulada de perdida e outras expressões não tão nobres? Certamente será. Mas esse também pode ser um preço justo em nome do compromisso que se tem com a sua arte, com sua criação, com a cultura, enfim, com o seu povo. Quando se tem compromisso com isso, que fique claro.
Talvez o temor de uma aparição discreta ou de uma carreira internacional fugaz tenham impelido para que a sua inserção recaísse sobre a colônia de brasileiros. Não são poucas as tentativas mal-sucedidas de nossos artistas . Vencer uma barreira de preconceitos não é suficiente: é preciso mostrar qualidade, dialogar musicalmente com quem nada entende de sua língua. Desse pecado, por exemplo, padeceu a dupla Sandy & Junior, engolidos pelo desequilibrado tripé da maturidade, da originalidade e da criatividade.
Reinventar as formas
É inegável que a sua trajetória na música brasileira tem sido vitoriosa. Depois de lançar-se solo, no momento em que o Axé Music dava passos vacilantes, Ivete traçou um rápido caminho para o posto de mais importante artista do show business brasileiro. Rápido, nesse caso, é pura modéstia: foi avassalador mesmo. Aproveitando o excelente momento em 2002, com a vitória surpreendente do Brasil na Copa da Coréia e do Japão, cravou nos corações e mentes dos 180 milhões de brasileiros a música Festa. Em seguida, as multidões que a seguiam no carnaval da Bahia, a acompanharam nas maratonas dos estádios brasileiros: primeiro o disco da MTV, na Fonte Nova (último gravado lá antes da demolição) e, logo depois, o DVD Ao Vivo no Maracanã, uma mega produção raramente vista no país. Uma pausa para o suspiro e para a gravidez e veio o singelo Pode Entrar, que entrou no mercado fonográfico superando, em definitivo, qualquer dúvida sobre a força de Ivete. Nesse ínterim, teve ainda o disco infantil gravado com o sempre razoável Saulo Fernandes. Com canções do nível e qualidade de Funk do Xixi, esse álbum é a flecha no calcanhar de qualquer Aquiles e merece cair nas graças da Inquisição.
A apresentação de ontem foi uma etapa importante da carreira de Ivete...da carreira dela aqui no Brasil. Com um nome consolidado e um espaço intocável, Ivete tem todo poder e legitimidade para continuar cantando Sorte Grande, Pererê e afins por todo país. Mas se de fato tem como pretensão ser um artista do mundo, já se viu que, com todo respeito e amor pelo carnaval baiano, ser somente Barra – Ondina ainda é muito pouco para qualquer Big Apple.