quarta-feira, 31 de março de 2010

De manhã


Foi como se repentinamente o desejo de não fazer nada tivesse se tornado senhor absoluto do seu corpo. Sentia-o percorrendo cada passagem misteriosa, interpelando cada pequena veia, provocando a dor nos seus traquejos. Alguma coisa, sabia, tinha sido deslocada de sua história. Só mesmo quem experimentou a profunda agonia de não fazer parte poderia mitigar seus demônios. Mas compreendia que isso era de uma vaguidão improvável. Até mesmo aquela cidade, entregue as alegrias famintas e aos heróis violentos da miséria, poderia agora evocar-lhe com segurança o significado de estranheza. Pois sim, a vida que se arrebentava contra os dias, as pessoas que não se entendiam consigo e o dissabor do pertencimento a tudo isso, não lhe poderiam ser mais do que mera estranheza. Assim mesmo, tal como o som da palavra impunha, se embolava na suavidade, no peso e no corte sangrento do seu equívoco. Indizivelmente percebia que o seu tempo ali, que a sua presença tão sutilmente desprezível pelos esbarros do cotidiano, não precisavam mais de sentido, de vinculação, de prosseguimento. E queria partir. Porque se tinha em si o desejo de não fazer nada, tinha no mundo o desejo irrepreensível de fuga. Quando aquela manhã encostou-se suave nas suas imperfeições, caminhou sobre o vento numa rota insegura, desprendida e supostamente vazia.

segunda-feira, 29 de março de 2010

Salve, Salvador

Salvador completa 461 anos nessa segunda-feira, dia 29 de março. Embora a data simbolize o marco fundador da cidade, a presença do colonizador português com pequenos núcleos de povoamento remonta há pelo menos 40 antes da chegada de Tomé de Souza, em 1549. Eduardo Bueno nos informa que a Vila do Pereira, atual Porto da Barra, ainda que completamente assombrada pelos ataques assíduos das tribos, se estabelecia com as características necessárias para o início da colonização, especialmente, por demarcar território. A própria ligação de Caramuru com os nativos (Leia-se o sexo profana com Catarina Paraguaçu, atualmente enterrada naquela Igreja caríssima da Graça) - dá conta de que essa relação, quase sempre conflituosa, entre índios e portugueses deveria se aprofundar nos anos subseqüentes. O que de fato foi confirmado pela cruz e pela espada.

É sabido que a escolha de Salvador como primeira sede do governo geral teve como fator decisivo a sua excelente posição geográfica (cidade litorânea, mais próxima de Lisboa, mais ou menos no centro do que até então se conhecia do território Sul Americano) e pela sua formação espacial (uma imensa Baía, descoberta ou encontrada por Américo Vespúcio, em 2 de novembro, Dia de Todos os Santos, daí o nome, combinada com uma falha no relevo garantindo boa visibilidade do território e deixando o colonizador em posição vantajosa numa eventual guerra). Nessa capitania, as terras férteis, aptas a constituir e sustentar a civilização do açúcar, bem como a proximidade da rica biodiversidade da Mata Atlântica, asseguraram um rápido e devastador processo de exploração. Como bem salientou, Sérgio Buarque de Holanda, Portugal veio atrás de riqueza que custa ousadia, não da riqueza que custa trabalho.

Precisamente por esse espírito aventureiro, pelo desprendimento de atravessar o Atlântico numa viagem infernal para enfrentar a hostilidade de uma colônia sem nada, pela possibilidade vaga de enriquecimento, é que tento compreender Salvador. Tento também compreender a Salvador de hoje a partir do significado da chegada do povo africano, posto que a negritude foi a força de trabalho que construiu pedra por pedra, literalmente, todos os cantos e recantos da cidade. Foi quem fincou em Salvador a sua religiosidade, os mistérios e a beleza do candomblé, a musicalidade, a festividade, mas, sobretudo, esse espírito de rebeldia, de irreverência e de resistência.

Entender esses laços nos fornece condições de perceber as inter-relações cotidianas daqui. Está espalhado nos pequenos cenários urbanos, nos diálogos, no remelexo, na malemolência, na ironia, no debochar de tudo e de si mesmo, na celebração, nas desgraças, no sagrado e no profano, nesse espírito barroco que pinta de contraste a cidade. Uma cidade que, como nenhuma outra, encarna uma relação profunda com o corpo, com a sexualização do sujeito, com a vaidade e com novas possibilidades estéticas. É a cidade das 365 igrejas e dos 5000 mil terreiros, da maioria negra e dos bolsões de miséria, da percussão vibrante e dos mortos da chacina de Pero Vaz, das festas de largo, dos preconceitos naturalizados e da sensação de que tudo é absolutamente possível, da chacota, das paisagens absurdas e da falta de educação dos motoristas. A Bahia do furtar e do fuder. A cidade do carnaval eterno: tem festa, tem preto, tem branco, tem corda, tem música, tem baiana, tem candomblé, tem gente, tem álcool, tem polícia, tem violência, tem sangue, tem tiro, tem trio e tem outras tantas coisas que a tornam, se não absolutamente encantadora, pelo menos, inexplicável. Parabéns, Cidade da Bahia!

quinta-feira, 25 de março de 2010

Passo


Quando por volta das três da tarde chegou a notícia de que um passo amador havia, por fim, terminado o espetáculo de Loraine, todos nós do pequeno Pontal ficamos mais velhos. Até aquele derradeiro instante o circo era a coisa mais convicta para os nossos delírios. De tantos saltos, acrobacias e mágicas advindas de todos os lugares escondidos, permanecia uma exaltação infantil, um borbulho de deslumbre. Tal como um grandíssimo encantamento. Pois sim, era um grande encantamento – e isso era tanto, tanto, tanto que não tinha pensamento capaz de cercar os limites. Porque era um universo intocável, do tipo que guarda para a infinidade saberes e contornos perfeitos de algo que nunca, nunquinha poderíamos reconhecer semelhança ou mesmo humanidade. Era o circo.

Logo perto passava o ribeirão negro; tomava o ar pelo barulhinho insistente da água viva cortando as pedrinhas do caminho. Os tipos de bichos e de homens, os atos selvagens, as cabeças e patas que poderiam emergir daquela podridão indescritível perturbavam nossos medos. Por essa imaginação assustadora, tínhamos temores e, quando obrigados a cruzar por cima do ribeirão, corríamos para não sermos pegos. Por toda volta, estavam também os matagais. Sem poda e sem beleza, eram arrebatados pelos mistérios do coaxar de uma rã e pelo tormento causado pela aproximação inevitável das cobras.

Era sim o circo, vó, era sim o circo, repetia e repetia. Chegou hoje pela manhã. Por cima do quintal dava pra ver bem a lona amarela, suja de barro, os paus armengados sem muita convicção e também as arquibancadas feitas de madeira escura, dessas que a gente constrói o poleiro das galinhas. Diacho, prende os gatos dentro de casa, murmurava maquinalmente enquanto queimava numa raiva particular. Era sim o circo, vó. Aquelas luzinhas amarelas, enfileiradas, presas e embaladas pelo sacudir do vento, não poderiam ser outra coisa. À noite, sim, senhor, ia ter espetáculo.

Bastava os palhaços encenarem suas bobagens risíveis em mundos sem nada, bastava os leões nos engolindo num rugido ou mesmo os elefantes fazendo sentir o minúsculo coração, bastava isso para que o picadeiro inteiro fosse do tamanho dos nossos olhinhos. De um lado a outro, a pequena trapezista se equilibrava sorridente sobre a corda – queria algum dia ter essa sina feliz. Andar sem rumos nessa linha bamba, carregando na ponta da sapatilha apenas a leveza de si.

Sabia que estava diante de um sonho do tamanho do impossível. Não poderia, mesmo na mais corriqueira fala do apresentador, ter algo de palpável no que via. E, exatamente, pelo que via, pelo tal do grandíssimo encantamento que assolava suas ideias é que sabia não ser encenação, não ser maquiagem, não ser roteiro, não ser teatro. E sabia também não ser real, não ser possível e não ser como as coisas daqui. Porque era o circo. E talvez fosse desse encontro, sem maiores possibilidades futuras, que nascia, diante dos pequenos, vestígios de um tempo incontável – marcado somente pelos poucos passos amadores. E aí, sim, compreendia, era o tempo inescapável de envelhecer.

terça-feira, 9 de março de 2010

Março


Duas mangas e um abacate, senhor. É isso que sou agora. Contra qualquer tipo de pretensão moral, política e bobagens egocêntricas, é tudo o que sou agora. Perguntava-me, afinal, se aquilo seria a luta desesperada pela vida? Sim, era aquilo. Era precisamente daquilo que falavam as antigas canções, entoadas pelos mais velhos. A luta pela vida é tão intensa e perseverante que, mesmo quando não há mais vida, ela não desaparece. Continua ali, se debatendo num corpo vazio, degradado pelas intempéries e desonestidades do mundo, procurando perdida uma veia capaz de rasgar-se em vida.

Aquela criatura que certamente não percebia minha presença, que não me olhava, que não me sentia; aquela criatura morta, de miserável existência, que parecia não existir para mim, carregava dentro si algo impossível de ser tocado pela racionalidade bruta. Existia, dentro dela, a luta pela vida. Assim, assistindo nu à sua ferocidade absolutamente destemida engolindo-me, eu não era absolutamente nada – somente um abacate e duas mangas. E isso em mim, creio, também era a luta pela vida.