
Salvador completa 461 anos nessa segunda-feira, dia 29 de março. Embora a data simbolize o marco fundador da cidade, a presença do colonizador português com pequenos núcleos de povoamento remonta há pelo menos 40 antes da chegada de T

omé de Souza, em 1549. Eduardo Bueno nos informa que a Vila do Pereira, atual Porto da Barra, ainda que completamente assombrada pelos ataques assíduos das tribos, se estabelecia com as características necessárias para o início da colonização, especialmente, por demarcar território. A própria ligação de Caramuru com os nativos (Leia-se o sexo profana com Catarina Paraguaçu, atualmente enterrada naquela Igreja caríssima da Graça) - dá conta de que essa relação, quase sempre conflituosa, entre índios e portugueses deveria se aprofundar nos anos subseqüentes. O que de fato foi confirmado pela cruz e pela espada.
É sabido que a escolha de Salvador como primeira sede do governo geral teve como fator decisivo a sua excelente posição geográfica (cidade litorânea, mais próxima de Lisboa, mais ou menos no centro do que até então se conhecia do território Sul Americano) e pela sua formação espacial (uma imensa Baía, d

escoberta ou encontrada por Américo Vespúcio, em 2 de novembro, Dia de Todos os Santos, daí o nome, combinada com uma falha no relevo garantindo boa visibilidade do território e deixando o colonizador em posição vantajosa numa eventual guerra). Nessa capitania, as terras férteis, aptas a constituir e sustentar a civilização do açúcar, bem como a proximidade da rica biodiversidade da Mata Atlântica, asseguraram um rápido e devastador processo de exploração. Como bem salientou, Sérgio Buarque de Holanda, Portugal veio atrás de riqueza que custa ousadia, não da riqueza que custa trabalho.
Precisamente por esse espírito aventureiro, pelo desprendimento de atravessar o Atlântico numa viagem infernal para enfrentar a hostilidade de uma colônia sem nada, pela possibilidade vaga de enriquecimento,

é que tento compreender Salvador. Tento também compreender a Salvador de hoje a partir do significado da chegada do povo africano, posto que a negritude foi a força de trabalho que construiu pedra por pedra, literalmente, todos os cantos e recantos da cidade. Foi quem fincou em Salvador a sua religiosidade, os mistérios e a beleza do candomblé, a musicalidade, a festividade, mas, sobretudo, esse espírito de rebeldia, de irreverência e de resistência.
Entender esses laços nos fornece condições de perceber as inter-relações cotidianas daqui. Está espalhado nos pequenos cenários urbanos, nos diálogos, no remelexo, na malemolência, na ironia, no debochar de tudo e de si mesmo, na celebração, nas desgraças, no sagrado e no profano, nesse espírito barroco que pinta de contraste a cidade. Uma cidade que, como nenhuma outra, encarna uma relação profunda com o corpo, com a sexualização do sujeito, com a vaidade e com novas possibilidades estéticas. É a cidade das 365 igrejas e dos 5000 mil terreiros, da maioria negra e dos bolsões

de miséria, da percussão vibrante e dos mortos da chacina de Pero Vaz, das festas de largo, dos preconceitos naturalizados e da sensação de que tudo é absolutamente possível, da chacota, das paisagens absurdas e da falta de educação dos motoristas. A Bahia do furtar e do fuder. A cidade do carnaval eterno: tem festa, tem preto, tem branco, tem corda, tem música, tem baiana, tem candomblé, tem gente, tem álcool, tem polícia, tem violência, tem sangue, tem tiro, tem trio e tem outras tantas coisas que a tornam, se não absolutamente encantadora, pelo menos, inexplicável. Parabéns, Cidade da Bahia!