Para Kundera a luta contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento. É ela, a memória, quem costuma exercer um papel implacável com a história. Funciona assim com os indivíduos, com um grupo, com uma sociedade, com uma nação inteira. Parte da responsabilidade pode ser explicada por questões ligadas às ciências naturais: somos uma espécie efetivamente seletiva. Os acontecimentos, os fatos, os objetos, os lugares, as circunstâncias, os sentimentos, as pessoas podem facilmente se esvaírem, perderem formas, contornos, sumirem, serem esquecidas e levadas de maneira sublime pelo sabor do vento. Na maioria das vezes, é um gesto espontâneo, sem deliberações, quase tocando às raias da irracionalidade.
Quando se fala de um país, notadamente marcado por uma história de crueldade e de disparidades, o esquecimento não é apenas perigoso por se imbricar e gerenciar a dinâmica da vida social – esvaziando de sentido tudo o que existe, tudo o que há, os porquês e suas raízes. No olho desse furacão, o esquecimento é talvez o grande inimigo. Inimigo do povo, inimigo do passado, a quem parece ser indiferente, inimigo do presente porque nos torno estranhos a nós mesmos e inimigo do futuro, uma vez que age de maneira proibitiva na superação de nossas celeumas. Se não teve essa função objetiva traçada desde o começo da sua produção, a novela Amor e Revolução, do SBT, que estreou na última terça-feira, dia 5, assim se expressa: uma arma contra o nosso desejo de esquecer.
O escritor uruguaio, Eduardo Galeano, celebrado por sua obra sobre América Latina, afirmou que ‘a história é um profeta com o olhar voltado para trás: pelo que foi e contra o que foi anuncia o que será’. Restam poucas dúvidas de que o nosso profeta está em algum cativeiro. Só precisamos saber quem o seqüestrou e onde o guardou. Já sabemos como resgatá-lo, embora não tenhamos vontade fazê-lo. E é precisamente sobre esse desafio que o Brasil precisa se debruçar. O desafio do resgate - de sua história, de seu povo, de si próprio.
A ditadura militar de 1964 tem sido retrata em livros, filmes, mini-séries, especiais, reportagens e uma infinidade de variações permitidas pelos recursos audiovisuais contemporâneos. Como tema central e tônica de uma novela é a primeira vez. Na mesma proporção que reconhecemos que esse ‘gênero televisivo’ tem suas limitações inerentes e qualquer deslize pode tornar tudo mais piegas e superficial do que o próprio roteiro original poderia prever, somos obrigados a também aceitar o seu incrível potencial de ingerência no tecido social, a sua força para abrir espaço para o diálogo, para troca, no cerne do povo brasileiro.
Assim, mesmo antes de sua estréia, propositadamente marcada para acontecer 67 anos e 5 dias depois do golpe de Estado (golpe esse que as viúvas de Médici e os filhotes de milico insistem em chamar de Revolução Democrática), Amor e Revolução é uma vitória. Pela primeira vez, de forma diária, num faixa de horário nobre, as pessoas podem acompanhar alguns dos principais e mais decisivos acontecimentos recentes do país. Se não servir para suscitar discussões mais acaloradas sobre projetos políticos, no mínimo cumpre a função de mostrar que a tirania, as perseguições, a cassação da liberdade de expressão, da liberdade política, as mortes, as torturas, e todo aquele aparato repugnante não foram, não são e não serão invencionices de desocupados. A história impôs ao Brasil um direito que nem a Constituição de 88 poderia contemplar: o direito de não esquecer.
É dessa malograda conquista que estamos falando quando apontamos nessa novela uma vitória. Suas limitações, seja pela fragilidade dos textos - tudo parece às vezes uma soma de clichês carregados e vigiados no bolso pela esquerda pueril- ou pelas interpretações – mais plásticas e com menos intensidade que a época exige- ou pelo excesso de canções datadas, não ofuscam o trunfo que a obra oferece: a possibilidade de assistir e de ouvir os testemunhos daquela realidade. De dizer: ei, isso aconteceu ontem. E vem no momento em que as pessoas parecem saturadas do tema ou convencidas pelo vale-tudo pós-moderno que tenta nos impelir ‘o já passou’, ‘é caso superado’, ‘a nova geração cresceu livre’, ‘olhemos pra frente’. Não. Não, aceitamos. Não temos o direito de esquecer.
Argentina e Chile, para citar os dois máximos expoentes nessa questão, lutam sistematicamente pela punição de todos os torturadores que ajudaram a estruturar e a manter viva a máquina de moer gente. Se lá os processos foram mais sangrentos pouco importa. Independente de 300 mortos ou de 30.000 a nossa indignação não é maleável, sujeita a barganhas. Na contramão, o Brasil vai deixando o tempo passar. Somente com o início do governo Lula os arquivos secretos começaram a ser abertos e ainda assim o exército, a extrema direita, a velharia golpista protestou, protestou e houve recuos. Mas basta mesmo o chilique do séquito dos velhos generais ou o despautério de que não se governa olhando pelo retrovisor para justificar a qualquer preço o silêncio do país?
Quando li as 20 primeiras páginas do livro Brasil Nunca Mais passei dois dias absorto. Aquelas páginas também me torturam. Diferente de meus tios, arrastados para os porões da ditadura, não vivi a época. Mas, parafraseando Belchior, minha dor é perceber que agentes que eletrocutavam, que inseriam insetos na vagina de mulheres grávidas, que arrancavam as unhas dos seus adversários, que jogavam jacarés, cobras contras os prisioneiros, e outras tantas barbaridades como a própria violência sexual, estejam soltos. Se com 60, 70 anos, não faz diferença. Não estamos falando aqui de vingança pessoal, de dar exemplo. É da justiça, da justiça de um país para consigo mesmo, com seu povo e com sua soberania. Não punir equivale a legitimar.
Amor e Revolução traz para essa geração, que no grosso de sua expressão detesta tudo o que não tenha o botão off e on, a possibilidade de saber. Oferece ao país o direito à memória. Assim como o combate ao racismo perpassa pelo não esquecimento do seqüestro de milhões de africanos e da sua escravização por mais de 355 anos, virar a página de 64 requer o enfrentamento do Estado consigo mesmo, o reconhecimento do erro na busca pelo acerto. Ironia ou não do destino, o maoísmo da luta armada que nos fala Amor e Revolução foi quem deixou um recado para o Brasil: não se pode dar uma grande salto adiante sem ao menos retroceder um passo.