De repente, uma alegria injustificável invadiu-lhe a face. Satisfazia-se numa explosão de contentamento que ninguém, no mundo inteiro, poderia entender. Era um sorriso capaz de derrubar as mais robustas muralhas e de atropelar o sentimento mais inflexível. Aquilo possivelmente era o gozo da vida. Somente isso poderia deixar o seu corpo inteiro a deriva num oceano de ar. Que direitos poderia ter de sentir-se assim? Não naquela cidade, não naquele cotidiano. Não com o pesar da perda, com a firme convicção de que fora derrotado. Perdera uma parte de si. A perda crua sempre foi para ele uma questão particular. Nunca poderia perder para alguém. Ainda que alguém lhe infligisse uma derrota fragorosa, essa derrota só poderia ser sua e nunca, absolutamente nunca, do outro. Então, por que sorria? Por que diabos aquela alegria surpreendente se atrevia a romper com o silêncio velado da perda?
A única resposta que via diante dos pequenos olhinhos molhados pela felicidade desesperadora era a necessidade de negar o mundo. Sim, tratava-se de negar o mundo. Era daí que brotava a alegria e aquele sorriso débil e meio cínico. Negava a cidade, negava o cotidiano, os amigos, o trabalho, negava os livros, os seus escritos e as suas dores. E a completude da negação, aquele ímpeto mordaz, avassalador e feliz era mais do que a negação do mundo: era a negação de si mesmo. Porque existir naquele instante era tão somente isso: negar-se.