quarta-feira, 6 de outubro de 2010

E aí, deputado?






Desde o dia quatro de outubro, tenho achado surpreendente a ojeriza destilada pelos os nossos setores médios pretensamente intelectualizados ao deputado federal mais votado do país, o cearense Tiririca - para o qual William Bonner se refere como "palhaço", num jogo dúbio de palavras visando a desqualificação e a picardia generalizada. Foram 1 milhão e 500 mil eleitores que, ao verem a cara do celebrado artista dos anos 90/00, autor de hits como Clementina de Jesus e manjedouro de bordões quilate "Não sei tu me amas, pra que tu me seduz", apertaram com força o botão verde - que, felizmente, não pertencia a onda do soumarineiro43. Agora, a Justiça brasileira, gestada no ranço preconceituoso, elitista e extremamente raivoso e racista de São Paulo, quer cassar seu mandato antes mesmo dele assumir. Alegam fraude onde só existe perseguição com fortes doses de mal-estar.

Não faço coro de apoio, não pretendo pintar a cara e sair pelas ruas defendendo essa candidatura. As qualificações já demonstradas de Tiririca o impelem para os palcos e não para o Congresso Nacional. Embora se palhaço, tal qual Bonner rotulou o artista, tenha casa, essa casa tem endereço: Brasília. O estarrecimento da situação vem do lamentável fato de que não vi nenhuma pessoa - cabe, salientar, pessoa na timeline- fazendo alguma provocação interessante sobre essa vitória esmagadora, incontestável e legítima. Vitória essa que nos permite leituras fundamentais sobre a nossa democracia e sobre a confiança que o povo brasileiro tem nas suas instituições. 


Só mesmo sendo leviano e tendo muita, muita má-fé se poderia dizer que os eleitores de Tiririca são todos ignorantes, tapados e descomprometidos com o seu país. Pessoas loucas que votaram por protesto – aqui recorrendo a essa odiosa expressão, que além de vazia e de pouco esclarecedora reduz as convicções e os pensamentos das pessoas a um mero “protesto”. São 1 milhão e meio de pessoas. Nesse pacote, cabem pessoas estúpidas, torcedor do Corinthians, hipponga, concurseiro, franelinha, agente comunitário de saúde, baleiro de sinaleira, vendedor de coxinha, etc e tal...e até intelectual da Usp. São pessoas que, independente das motivações, percebem, inevitavelmente, como a nossa democracia chafurda na lama, esgotando-se porcamente em si mesmo e sujando tudo o que se encontra num raio que vai do Oipoque ao Chuí. Claro que a reação delas a esse fato não é das melhores nem a única alternativa – por sorte nossa, uma vez que são nesses momentos de ausência de referências e de caminhos que costumam surgir fenômenos como Tiririca, Mulher Pêra, Popó e assim por diante.

Mas há, nessa eleição, traços inequívocos de que nosso sistema representativo faliu. Se durante todo esse tempo enviou-se pessoas ditas “sérias”, com notório saber social, de reputação ilibada, dentre outras qualidades inquestionáveis no nosso jogo de distribuição de competências, e essas pessoas responderam com lavagem de dinheiro, corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha, troca de favores, clientelismo, cometendo crimes constantes e irremediáveis contra a administração pública e, portanto, contra o país, então, nada mais adequado do que fazer a arruaça, cair nas graças do oba-oba e fazer de Brasília uma imensa brincadeira. Exatamente como os políticos, que historicamente tem se dirigido para lá, tem tratado o país.

Para além desse fardo pesaroso, paira outro aspecto: os nossos velhos ideais iluministas de querer sempre tutelar as escolhas do povo, se excluindo, inclusive desse coletivo, menosprezando os seus saberes. A posição sempre cômoda de enxergar o inferno nos outros. Como se a indignação por Tiririca fosse algo realmente necessário, bom e oportuno. Esquecendo, por assim dizer, que nossa ira salvaguardadora dos ideais democráticos deveria recair implacavelmente contra a ida de Fernando Collor ao 2º turno, contra a vitória de Renan Calheiros ao Senado, de Mário Negromononte – sanguessuga - ao Congresso, da possibilidade de vitória de Weslian Rorirz em Brasília, e de tantos outros que usaram a máquina pública para fazer cair pesadíssimas barras de ouro em suas respectivas contas bancárias nas Ilhas Cayman. Ou mesmo daqueles que representam  severos entraves aos avanços pela liberdade e pela igualdade social. A corja que sobe no púlpito para cuspir perdigotos contra o casamento gay, o aborto, em defesa dos transgênicos, contra a demarcação de terras indígenas e quilombolas, aqueles que, como Demóstenes Torres, acham que racismo é coisa da cabeça trançada de preto. Para os canalhas, a Justiça se faz seletiva, inoperante e, costumeiramente, parceira. 

Esses sim, são os que nos matam. São os que estrangulam nossas utopias e nos empurram para o calabouço do atraso, da ignorância. Condenam-nos a viver com medo, cerceados do nosso direito de existir coletivamente. De Tiririca, não se pode temer. Ele ainda sequer sabe o que um deputado faz, o que, nesse estágio, é um ponto extremamente considerável. E convenhamos algumas palhaçadas e projetos malfadados no meio desse caldeirão, definitivamente, não são capazes de fazerem as coisas ficarem pior do que já estão. 


Na foto: A capa do jornal Meia Hora dando o tom dos próximos quatro anos. Muito suspense e terror no cemitério Brasil.  

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