Foi pensando no instante em que me sentei no banco duramente espumado que tomei conta do escrito. Escrevo da rodoviária. A senhora gorda trajando um azul recém comprado no centro espreita o bloco de papel disfarçadamente. Embora ela não seja capaz de perceber que escrevo sobre seu comportamento, sobre como o meu pensamento me diz que ela acabará com o coração estagnado num rompante emocional, há naquele olhar a curiosidade que aprecio. Que instiga e que não permite a incerteza de não tentar, do não saber, do não querer. Aqueles ombros transversais e os braços esticados coadunavam com a repetição do dedo massageando a cadeira. Era nesse gesto repetitivo, nesse estampido desconcertante, que se lia a sedução exercida por um papel tocado pela tinta pesarosa da caneta. Uma cena imprestável, como todo o resto. Naquele jeito de caminhar, uma mulher católica. Uma procissão vagarosa. As senhoras católicas tem verdadeiro apreço por sacolinhas brancas. Ela os tinha de todos os tamanhos e para todas as utilidades. Era a comida da viagem, o remédio de enjôo da neta, a escova de cabelo e garrafa de água. Medidas cautelosas que, sem cautela alguma, revelam o comportamento dessa senhora. As unhas do pé foram pintadas no salão do bairro na manhã chuvosa dessa primavera. Vermelhas para ter algum luxo. Há uma pintura simpaticamente lasciva nelas. É passageira, embora. E se me esquecesse desse papel propositalmente no banco? Teria coragem de ver a expressão de desgosto saltando nas suas expressões inertes? Teria mesmo o direito de acrescentar algum sentimento ali? Não poderia precisar a sensação de descontentamento que existe na traição.É uma traição. Assim como esse relato. O papel que vou destacar e abandonar sobre sua mala antes de partir me denunciam. Como poderia desconfiar que ao não se inquietar com a minha presença estaria me permitindo desnudá-la, colocando nela as minhas roupas? É por se sentar de costas, num ato deliberadamente inequívoco de quem perdeu o controle de seu corpo e de suas vontades, que me enfio para sua tristeza.
A filha lixa preguiçosamente a unha. As duas crianças acompanham o vagar solitário da máquina de limpeza. É um grande desconforto, estou certo. Como em todos nós, essa perdição ensaiada nos enche de vazio, de perda de alma, de controle dos dedos e do que se olha. Há seis pessoas sentadas nessa fila. Todas separadas por um banco e pela imposição do silêncio que a madrugada nos obriga. Que silêncio, ouço. O sapato toca o chão provocando estalidos inócuos. Não poderia representar, por assim dizer, aquela ruptura. Silêncio – era uma respiração, uma vida dentro da outra. Num gesto habitualmente despretensioso ela tomou o neto para uma andança. Vendo-os passar por mim, já não éramos seis pessoas cerradas por essa morte sem cheiro. Agora sim, eu poderia saber, estiveram vivos.
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