Estava prepararando um texto sobre o transporte de Salvador. Nunca é notícia velha o drama de que na terceira maior cidade do Brasil, o primeiro grande problema seja se lomover. A verdade é que já li e vi bastante sobre o preço da tarifa, o arrastão na Lapa, o ônibus vomitando gente pela janela, a margem de lucro da empresa, etc. E as dúvidas insolúveis ou motivada pela curiosidade infantil são massacradas na minha cabeça fervilhando de problemas. Algo que ninguém nunca li nem vi é como os próprios rodoviários transitam. A conversa que tive com o motorista da BTU esclareceu a minha inquietação boba: Se os ônibus em Salvador param de circular, a exceção dos corujões, que na fauna do transporte público da cidade é espécie em extinção, quem é que leva os motoristas para casa depois que eles param o ônibus na garagem? E quem é que leva quem levou o motorista? E, se as 4h da manhã alguns ônibus já começam a circular na cidade, como os rodoviários chegam para trabalhar na madrugada se na madrugada não tem ônibus? As prováveis respostas cor de rosa que eu sempre dava aos meus 12 anos eram:
1- A empresa dá prefêrencia a funcionários que moram perto da garagem.
2 - Cada empresa tem um dormitório com roupa de cama limpa e moça servindo cafezinho na noite.
3 - Tem um ônibus especial, como os do Polo de Camaçari.
4 - Eles pegam um táxi e a empresa os reembolsa mensalmente.
1- A empresa dá prefêrencia a funcionários que moram perto da garagem.
2 - Cada empresa tem um dormitório com roupa de cama limpa e moça servindo cafezinho na noite.
3 - Tem um ônibus especial, como os do Polo de Camaçari.
4 - Eles pegam um táxi e a empresa os reembolsa mensalmente.
Ontem, saindo da Castro Alves, o executivo Praça da Sé - Imbuí, reconhecido pelo número de assaltos e pelo ar condicionado quebrado, foi a única opção para sair do caos provocado pelos fãs da antimpática Capital Inicial. Depois do motorista ter feito questão de dizer que só me levaria na Cardeal porque ele queria, dado que o horário dele já tinha sido completado e que, portanto, ele poderia ir para garagem, percebi que o fato do ônibus estar vazio era a oportunidade quase ideal para saber como os motoristas chegam em casa e voltam para o trabalho, na madrugada, numa cidade que não tem transporte público das 00h às 04h da manhã. Quase ideal porque o rapaz era do tipo que fazia trejeitos de irritação toda vez que seu desabafo ia ser interrompido. Com um pouco de insistência e de baianês, cavei a reposta desanimadora: "Cada um tem que se virar. As pessoas nessa cidade tem respeito por rodoviários e oferecem carona quando vê a gente esperando o transporte. Aconteceu isso hoje. O velhinho me viu parado e disse 'rodoviário tem que ser ajudado, vocês fazem a cidade funcionar' e me levou até a garagem". Tá, mas e quando não tem carona? "Olhe rapaz, tem um ônibus da empresa chamado Leva e Traz. É o manobrista da garagem que faz o circuito. Ele sai duas da manhã e volta umas três e meia. Vai deixando os motoristas que trabalharam na noite e pegando os que saem no começo da manhã." Ah, então, tem essa saída. "Mais ou menos, né? Porque se a gente acaba o serviço 23h40, a gente não vai esperar até as 02h da manhã. Prefere aventurar e ir catando nas linhas de outras empresas até chegar em casa. E pra chegar cedo também, o Leva e Traz não para na porta de sua casa. Você tem se dirigir pra rua que ele passa". E se ele passar numa rua distante? "Ai, pode complicar. Se não tiver carona, você vai andando ou espera pra ver se o Leva e Traz de outra empresa pode colocar você na rota". Tá, mas ficar no ponto de ônibus não é perigoso? "E ficar aqui no ônibus? Você acha que é seguro é? A gente se vira nessa vida, meu jovem". Só quem se vira aqui nessa cidade é quem não tem, eu acho. "Pois é, mas a gente até tinha uma moto. Aí facilitava, né? Porque a gente ia de moto e parava lá dentro da garagem. Sabe o que o dono da empresa fez? Pregou um aviso informando que estava proibido estacionar veículos dentro da empresa. Você acredita nisso? Gente esperta, malandra. E ainda teve a cara de pau, de indicar um lugar pra vender as motos da gente. Não dei ousadia e não vendi". Se duvidar, essa tal loja devia ser dele ou de parente. "Oxe, e você tem dúvida é? Olhe, a BTU, a Rio Vermelho, a Ondina, todos da mesma família. Uns espanhóis. Era uma empresa só, mas rico quanto mais tem mais briga. Ai estão meio separados. Ganham um dinheiro. Esses ônibus mais novos eles fazem é uma tal de franquia, não é nem empréstimo, porque não precisa. Num mês, já dá lucro". E quem trabalha mais no executivo, ganha mais? "Ganha essa roupa aqui e uma coleção de assaltos. Aqui a gente não ganha nada, nada. É um massacre. Já teve dia de fazer 16 viagens. Cada uma dura 1h. 15 minutos de intervalo não vou nem ao banheiro. E se você não cumprir a tabela, tá fora. Massacre, massacre mesmo. A gente só não lambe o chão porque a língua é pequena."